sábado, 19 de novembro de 2011

VII

VII

Com o tempo , Renata foi descodificando e desossando a personalidade de Túlio Bernardo com o convívio diário. Tal convívio, ora pacífico ora turbulento, lhe dava uma sensação ainda que irreal de que ele estava ligado a ela por laços afetivos.
Mais ligado ficou ao descobrir, por acaso numa conversa, que ela tinha conhecido sua irmã Alma Nívea no antigo ginásio e ficou muito feliz com esta coincidência. Somente viu a sua irmã uma única vez e não esqueceu jamais seja pelo nome incomum seja pela cor que carregava nos olhos: um azulado cerúleo.
A bebida o deixava mergulhado em antíteses e paradoxos a ponto tal que esquecia o que negava minutos antes e depois caía em contradição. No ano em que se conheceram, não poderia Renata jamais lhe presentear no dia dos namorados. Namorado causava um desagradável mal estar em relação à Renata e uma responsabilidade extrema. Uma semana antes do dia 12 de junho para não lhe entregar o presente na data, apareceu em sua casa com uma caixa de artesanato cheia de corações vermelhos. Primeiro, ele a esculhambou dizendo ser um presente cafona. E ao ouvir de Renata que estava decidida a não mais se relacionar com ele a partir daquele dia, Túlio Bernardo parecia se sentir abalado com tal resolução e lhe perguntou assustado:
- Você vai me abandonar?
Diante da recusa do presente que não lhe teria nenhuma funcionalidade, ela aventou a possibilidade de transformá-la em uma caixa para seus remédios. A tal caixa, no final de tudo, foi parar nas mãos de sua amiga Rebeka no dia do aniversário dela. Ela tinha se casado cinco vezes sendo a última com um inglês alcoólatra muito mesquinho e de quem roubava a carteira duas vezes ao dia: na manhã e na noite. Alan , in memoriam, era seu nome, e morreu de cirrose hepática. O casal já estava separado, mas não no papel. Ficou menos de 24 horas viúva, pois herdou do defunto o seu melhor amigo como novo marido e muito mais jovem.
Um dia Nado, em tom agressivo, lhe perguntou a respeito da tal caixa e que ela havia prometido transformá-la em uma de pequenos socorros. Foi ríspido e ela ficou surpresa por ele ter se lembrado da nova função que daria ao presente e, ao mesmo tempo, exigindo que assim o fizesse. Mas, a caixa não era cafona?
Eram situações, diálogos, respostas com ou sem nexos e anexos. Faziam ela perceber que de um modo ou de outro, ele gostava dela. Era doido. No entanto, por várias ou uma única razão não assumia seus sentimentos. Alegava que já estavam velhos para namorar, de sair de mãos dadas pelas ruas, irem juntos ao cinema y otras cositas más . É porque ele não leu O amor no tempo do cólera, de Gabriel Garcia Marquéz. Mas, o que seria anormal se eles se gostavam como tanto outros casais que se queriam bem e curtiam o amor em todas as idades e em todos os lugares do planeta? O amor entra e sai do coração sem pedir licença já dizia o fiel escudeiro de D. Quixote de La Mancha, Sancho Pança. Qual era o problema de estarem juntos se tinham algo em comum ainda que de uma ora a outra ele o negasse e afirmasse?
Foi assim que, pouco a pouco, ele foi desabafando o sentimento que vinha logo após as noites e dias de bebedeira e cheiração. Ficava virado três ou mais dias. Não comia. Era um sentimento vazio como algo oco dentro de si sem recheio aparente que pudesse preencher a sua existência. O efeito de tudo e de todos nestes prazeres momentâneos era o vazio existencial e o cansaço como se tivesse carregando uma tonelada de pedra sobre as costas. Um mal estar físico que conjugado com os problemas estomacais lhe deixavam, praticamente, reduzido a zero e deprimido na cama.
Não adiantava nada porque não se emendava. A dependência era algo mais forte do que ele e incontrolável. Nem a própria Renata jamais tentou fazê-lo porque sabia da inutilidade de sua ação nunca jamais cometida. Ela o ouvia e sentia o quanto era um homem sofrido e amargurado. Um homem sobrecarregado de muitas culpas que não merecia advindas da infância devido à criação que recebera. Todos os relacionamentos afetivos que, até então tivera, com pessoas dependentes químicas, tinham como cerne do problema o mal relacionamento com o pai. Foi assim com Lucas, Pancracius e com ele. Todos haviam medo da figura paterna enquanto eram mais ligados às sua respectivas mães.
Na juventude, chegou a freqüentar uma psicanalista durante três anos e em vez de tratar da sua psique e do seu emocional, comparecia às sessões e inventava o que não existia. Chegou a afirmar para a sua apaixonada que nunca tinha esquecido o que contara à psicanalista seguindo seu falso tratamento de maneira linear e coerente sem atos falhos. Poderia ter se livrado de fantasmas que o atormentavam e ter resolvido questões de seu ser em vez de ficar até aquela idade penando, batendo cabeça contra a parede ou dando murro em ponta de faca, se auto-destruindo e auto-flagelando.
O que mais impressionava à Renata era que no depoimento e testemunha deste limbo em que vivia, não era capaz de abandoná-lo. Soube que, durante dois anos, ficou sem beber e sem cheirar empolgado com o nascimento de Iracema. Comparecia a um grupo de auto-ajuda, mas depois o largou e voltou à ativa. Afirmava que parecia ter cunho religioso o que contrariava as suas convicções de ateu convicto e por tal motivo o deixou. Parece que não partilhava nas reuniões e dizia que, logo após, os dependentes químicos iam se drogar. Muitos deles aparentavam uma posição e na saída das reuniões eram diferentes. Quis ser original e assumir o que, realmente, sempre foi em toda a sua vida: um dependente químico. Disto se vangloriava ao narrar as aventuras e peripécias para obter as drogas ou então as viagens que empreendia com amigos da faculdade para tal propósito. Chegou a fazer a famosa viagem do Trem da Morte para países andinos saindo do Brasil. Disse aos pais que iria em busca de vestimentas feitas de lã de lhamas para revendê-las no Rio de Janeiro em pleno país tropical , abençoado por Deus e bonito por natureza. A viagem foi de uma envergadura tal que durou oito meses e ainda tiveram que se deparar num vagão com o grupo terrorista peruano Sendero Luminoso. Apavorados, todos foram salvos graças ao desempenho de uma das participantes, Mônica, e logo após até fotografias tiraram com o grupo. A cocaína rolava solta e era cheirada numa colher de sopa cheia.
Sempre esteve envolvido com bebida e drogas e em decorrência disto, esquecia do que tinha feito ou dito e muitas das vezes, era a sua apaixonada o seu hard disk ou disco de memória. Apesar de fazê-lo relembrar do que falara ou fizera, ele próprio em sã consciência admitia não tê-lo feito por acreditar ser um absurdo descomunal. Mas, Túlio Bernardo era o próprio absurdo em determinadas atitudes que deixavam Renata surpreendida principalmente após os inúmeros entreveros. Eram de tais proporções de agressões verbais de ambas as partes que acreditava ela ser o término de tudo então daquilo que tinham vivido. E sofria. Depois de passada a tempestade vinha a bonança, ainda que, após vários meses eles se reencontravam como se nada tivesse acontecido embora acertassem as arestas. Ele a recebia de volta e entregava a chave que inha e vinha num vai e vem in modus continus.
Se, em vez de ficar na retaguarda, assumisse não como namorada, noiva ou mas qualquer coisa que o valha, tudo seria tão simples e menos sofrido para ambos. O que atrapalhava era a sua cabeça e coração confusos e seu medo inconseqüente de se relacionar com subterfúgios porque ela o adorava de um modo incondicional sem pedir nada em troca. Fazia por ele as coisas mais impossíveis e não media conseqüências porque sentia-se feliz ao fazê-lo menos infeliz do que era. Sabia o que era o amor e o sofrimento por tal sentimento. O que adiantava se esconder dela se, na verdade, depois de tanto rolo ele voltava como afirmou uma vez a ela pelo telefone pedindo para não haver mais entreveros. No final da conversa, afirmava:
- Eu sempre acabo voltando!
Era um osso duro de roer esta relação. Um reclamava às vezes do outro, mas não se largavam e parecia ser um pathos o que havia entre os dois. Era tudo muito divertido mas, ao mesmo tempo, patológico. Ambos nutriam pelo outro o mesmo sentimento. A única diferença que existia era a de que um se declarava e outro se mascarava. Os deslizes que, às vezes, não de dava conta como aquele em que preparou para a sua apaixonada o macarrão ao alho e óleo que era a sua especialidade. Diante do fogão e com a colher de pau na mão mexia a panela e exclamava:
- Nunca preparei um alho e óleo assim tão bem para uma namorada!
Em um ano do qual não se recorda, Renata estava na casa dele no dia dos namorados e caía num sábado. O dia da semana lembrava nitidamente menos o ano como também se recordava da situação. Estavam na iminência de discutirem quando ele lhe pediu:
- Não vamos brigar hoje, logo hoje..... !
E não completou a frase, deu tempo a si próprio de deixá-la incompleta. Será que tinha medo de que ela se tornasse mais apaixonada e, conseqüentemente , mais possessiva já do que era? Era uma mistura de possessão e ciúmes porque ele não dava certeza de nada e isto a deixava num estado de expectativa e angústia. Sentia-se mal correspondida, mas sempre estava junto a ele e este por sua vez a queria de alguma forma estranha que ela não conseguia entender. Era muito estressante tanto para ela quanto para ele. Afinal, não era muito diferente dos companheiros do grupo de auto-ajuda que freqüentava. O enredo era o mesmo, a negação era a mesma, a degeneração também era a mesma. O que mudava era apenas o sexo e o endereço do parceiro ou parceira devido ao alcoolismo. Com cocaína rolando junto, a situação ficava mais complicada. Era como dizia sua amiga Nadine, alcoólatra em recuperação. Se a questão afetiva com pessoas normais já era complicada, imagine com quem era alcoólatra!?
Uma noite de quinta-feira convidou-o para viajar com ela à uma região de praia e, logicamente, ele declinou do convite. Foi algo aleatório. No dia seguinte, por alguma razão, não foi à casa dele e nem tampouco lhe telefonou. À noite, resolveu procurá-lo pelos bares das redondezas quando o avistou de longe devido à sua altura e também pela roupa que usava. Estava ele acompanhado de um homem e quando a viu chegando de mansinho porque assim ela o fez de maneira acanhada e com vergonha, ele exclamou:
- Cabra, você por aqui? Pensava que tinha viajado!
Apresentou-a ao homem dizendo que ela desempenhava para ele o papel de mãe, irmã, amiga e não completou mais. Talvez poderia dizer mulher, companheira ou amante. Em vez disso, virou-se para ela enumerando nos quatro dedos o grau de afetividade que sentia por determinadas pessoas de sua relação. A primeira era a filha mais nova Eleonora, a segunda seu pai, a terceira Iracema e a quarta era ela podendo passar para o topo de todas as outras. Falou isto com um copo de bebida na mão e de certo estava in vino veritas. E também de certo se ela lhe recordasse o que havia dito naquela noite acompanhado daquele homem, diria que não havia dito nada disto. E mais ainda, apresentou-a ao amigo dizendo ser ela amiga de confiança e que quando precisasse de alguma coisa e, evidentemente, esta coisa seria um ou dois papelotes de cocaína, seria ela que viria buscar a mando dele. Nunca aconteceu isto porque jamais ela o faria porque o seu amor por ele não chegava a este ponto de se arriscar. O sonho de consumo dele era que ela o acompanhasse numa boca de fumo. Tentava persuadia-la alegando total segurança. Algumas vezes quando saía para comprar a droga, era pego pelos policiais e tinha que soltar alguma propina para não ser indiciado no terceiro artigo como usuário. Não havia santo que a arrastasse para que o acompanhasse. Por que em vez de convidá-la para ir a uma boca de fumo, não a chamava para perto de sua própria boca e lhe dava um beijo?

VII

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

VI



Gostar ou não gostar, eis a questão! Foi aos poucos que Renata foi conquistando a confiança do seu amado. E quem sabe um amor mal sentido?  Até a senha do cartão de crédito dele , ela o possuía, tal a confiança que depositava naquela doida.  Foi no tempo em que ainda era professor na universidade. Podia se dar ao luxo de todo dia 28 do mês, bancar a patifaria para seus “amigos”. Na vez em que ficou com o cartão de Nado, retirou somente a quantia de vinte reais. Ele  disse-lhe que podia tirar quando quisesse.  No entanto,  alertou para que não visse o seu saldo para não se assustar. A senha era a data de nascimento de sua filha mais velha, Iracema.

Poderia se fosse outra, retirar mais após ver o saldo, mas Renata era uma pessoa de boa índole apesar do seu temperamento intempestivo.  Era capaz das mais ousadas ações que deixavam Nado estupefato como aquela que dormiu em sua casa enquanto passava por uma rebordosa das mais brabas.  Nunca revelou o verdadeiro motivo que a fez dormir ali. Vinha-lhe à mente a morte de Pancracius.  Como não tinha o hábito de dormir fora e sua mãe era muito tradicional, ela teve que recorrer a um subterfúgio.

 Nado havia já estado em sua casa quando ela o convidou para ver suas esculturas e pregar alguns móbiles no teto de seu quarto porque ele era alto como um poste.  Foi num domingo, dia dos pais, ele vinha da visita às suas filhas que moravam com Laida.  Como moravam perto de uma boca de fumo, aproveitou e comprou o pó seu de cada dia. Ao chegar na casa de Renata, foi apresentado à mãe dela que num dado momento percebeu algo estranho naquele homem. Estava muito alegre , de uma alegria incomensurável após ter cheirado no quarto dela e no banheiro.  Renata teve que conter a mãe na cozinha para que ele pudesse dar cabo do que queria.  .  De repente,  Da. Maria Teodora, sua mãe, a chamou ao toalete . Perguntou se ele era drogado e ela respondeu:

- Não, imagina! – com muita convicção e veemência.

A partir deste episódio a sua presença foi tida quase que como persona no grata na casa. Para se encontrar com ele , inventava mil caôs  com pessoas fictícias, lugares verdadeiros onde já tinha estado e programas alternados .  Um álibi seu era a sua amiga  Nadine, uma descendente de holandeses, alta e ruiva. Toda vez que ia à casa de Nado , dizia ir à casa dela ver filmes em DVD  de  Jean Paul Belmondo, ator francês.

Na noite em que resolveu dormir em sua casa , inventou que iria para a casa dela. O motivo era o calor abrasador daquele verão que fazia com que o sol batesse na parede de seu quarto. À noite era impossível dormir naquele forno. A convite de sua amiga, segundo Tatá, foi dormir    onde poderia desfrutar de uma noite bem dormida com ar condicionado.  Foi assim que pela segunda vez dormiu na casa dele . A primeira vez também  inventou outro caô. Disse que por problemas emocionais, sua amiga não queria passar a noite sozinha por estar muito deprimida. Lá foi ela dormir na casa do seu amado. Das cabeças dos dois saía uma fábrica de birutices e da  dela uma de vários caôs para poder estar ao lado dele.  A sua permanência em casa foi de tal modo ausente que uma vez Dora, como era conhecida sua mãe, lhe disse que ela parecia ser hóspede de um hotel. Somente aparecia em casa para dormir.

Por três vezes anteriores , Tatá decidiu dormir na casa de Nado dizendo que iria fazer um arrebol. Era o termo que ela havia citado como outros para designar que iria ficar ali com ele até o alvorecer. Como ele não sabia o que era arrebol, explicou-lhe que era um  vocábulo muito usado pelo poeta dos escravos, Antônio Castro Alves. Foi inútil tentar dormir ao seu lado porque ele não parava de falar de tudo e de todos . Ela viu o dia amanhecer enquanto sua mãe lhe telefonava para voltar para casa  e que estava intranqüila.  Num desses arrebóis, ao voltar para casa cedo pela manhã e com as feições carrancudas de sua mãe e de Consolación, exclamou:

- Se se relacionar com um homem e dormir com ele é esta revolução, vou agora me relacionar com uma lésbica!

As duas não disseram nada.  Ficaram mudas, caladas, imóveis como estátuas marmóreas.

Aquela noite da rebordosa foi angustiante para Nado e ele se espantou ao vê-la lá embaixo por volta da meia-noite chamando-o pelo seu nome. Pediu-lhe que não saísse de casa  e que iria comprar cigarro e dormir ali com ele. Este dormir nada mais era do que uma assistência já que estava passando muito mal. Home care. Não adiantava nada porque após este mal estar sempre presente, no dia posterior sairia para beber. Nado vomitou a noite inteira enquanto Tatá dormia no colchão onde haviam dormido todas as pessoas que por algum tempo tinham se abrigado na casa dele como o próprio  Olavinho.  Dormiram no mesmo quarto e somente pediu que abaixasse o som da televisão, pois ela não dormia com barulho, o que foi atendida muito mais tarde.  No meio da madrugada , despertou ao ouvir um rumor. Era ele que não conseguia dormir e estava se levantando da cama para ir ao toalete. Foi quando ela lhe perguntou para onde ele iria e não soube mais da resposta porque caiu no sono novamente.  Despertou muito cedo com a claridade do dia que amanhecia e foi direto para a janela fumar. Era o seu único vício e em demasia. Fumava a rodo. Até Nado e seu amigo larápio haviam comentado a ela o tanto que ela fumava. Era a proporção da quantidade de bebida e drogas que eles consumiam.  Era muito cedo ainda  por volta das seis e meia da manhã e nada estava aberto. Nado tinha passado para o outro quarto e ali deitado no chão exclamou para a sua apaixonada:

- Estou carente, mas não de namôro!

Renata deu-lhe um beijo na testa e quase lhe respondeu que não precisava disso porque era ela quem o namorava e não ele em relação a ela. Foi uma noite muito pesada já que Nado além de  sofrer de dependência cruzada , tinha úlcera no estômago, uma ferida tão aberta , vermelha e exposta. Parecia ser uma verdadeira boceta.  Ela viu  em sua ultrassonografia depois de passarem quase qautro meses sem se falar. Foi ele quem a procurou chamando-a por Renatinha quando a encontrou na porta do prédio dela. Ela levou um verdadeiro susto. Uma atitude como quem quisesse  se aproximar usando o nome dela no diminutivo. Estava ele com a ultrassom debaixo do braço e ele convidou-a para ir à sua casa.  Renata havia dito que o afastamento fez com que ela tivesse cortado um dobrado e sofrido muito. Ele apenas disse:

- E  eu ?

A úlcera era e não era tratada com medicamento. Ele chegou a se consultar num especialista sem deixar de revelar seus vícios. Não tomava a medicação de maneira constante ´porque o que tomava com frequência era a sua cachaça sagrada de cada dia. Pantocal, o nome do remédio e seu genérico era Pantocrazol. Até os remédios que ela tomava por duas ou três vezes , ela comprou para ele quando estava em estado lastimável.  Não media esforços para não lhe deixar faltar nada para que se sentisse bem de saúde orgânica e emocional.

 O relacionamento deles era sazonal. Às vezes bem e muitas vezes mal.  Ela também o perseguia muito porque era a sua fonte de alegria e queria sempre estar ao seu lado. Renata era uma pessoa triste.  Quando sumia no mundo, voltava muito tempo depois como se nada tivesse acontecido. Renata sentia-se como se ele tivesse partido para nunca mais voltar e ficava a ver navios. À parte esta sensação de abandono crônico em sua cabeça, vinham-lhe hipóteses as mais trágicas: uma prisão, uma briga com arma de fogo ou arma branca, uma internação, desaparecimento total sem deixar pistas  por causa de dívida de drogas ou algo do gênero.  Em vez disso, estava sumido em meio às suas zoeiras de sempre com os mesmos companheiros de patifaria, se entregando de maneira desenfreada às putas atrás de um prazer passageiro  quando não falhava o pau.  Logo após as noites inebriadas e entorpecidas,  caía na tumba de sua cama durante semanas num cansaço inesgotável.  Renata o tratava com muito carinho mais do que um próprio namorado nestes momentos.  Talvez se assim o fosse não seria tão paparicado e mimado por todos os lados.  Muitas das vezes quando surgiam os  entreveros, não conseguia conter o seu furor e a sua língua ferina  e o insultava sem dó e compaixão.  Certamente, nunca foi, ao  mesmo tempo, tão bem amado e querido  e enxovalhado, esculachado, esculhambado, avacalhado, anarquizado, tripudiado, humilhado e por que não dizer xingado!?  Para depois ser mimado, adorado, venerado, idolatrado e  o ciclo continuava como um carrossel que ele retroalimentava apesar de se sentir culpado. Evocava a lembrança do grande amor de sua vida, Maria Cândida, com quem ficou dez anos namorando e chifrando com as amigas dela e a própria empregada.  Isto era porque Canducha, como ele a chamava carinhosamente, foi o seu  grande amor. Imagine se não o fosse!?  Segundo dizia à Renata, depois de muito refletir e querer a felicidade da namorada , resolveu abandoná-la  para não fazê-la sofrer mais.  Achava-se um cafajeste e ela não merecia este tipo de homem.  A verdade é que Renata nunca acreditou nesta estória , nesta  resolução.  Muitas vezes, ele deixou escapar que tivera duas decepções amorosas na vida. A primeira foi com a namorada Maria Cândida. Mas, não foi ele quem decidiu romper o relacionamento? Por que motivo estaria decepcionado? A outra foi com Adelaide que lhe pregou o golpe da barriga. Ao querer mostrar ao pai que tinha virado homem, era viril e macho, depois de anos sumidos apareceu na casa dele com Laida barriguda. E a partir de então, tudo foi arrumado às pressas. Apartamento mobiliado no qual viveu com a sua mulher que reclamava do local. Dizia ela que morava num cortiço. Na verdade, quando foi à casa do seu futuro sogro em um condomínio de luxo com piscina e churrasqueira botou um olho grande em tudo.  Achava que, no mínimo, talvez também pudesse morar em algo do gênero, mas em vez foi disso acabou parando no último prédio de uma rua que dava acesso a um morro.  O morro onde ele subia e descia quase que, diariamente, e era conhecido como o “professor”. Freqüentava os bares de lá e se dava com as piranhas viciadas que se aproximavam dele com o mesmo propósito: drogas e sexo. Somente isto.

Desta vida , estava cansado e sentindo muitas vezes usado e vazio, assim dizia à Tatá que ouvia pela enésima vez o mesmo argumento e discurso. As pessoas não tinham caráter, ética, sensibilidade, intelecto, nada de nada. No entanto, estava ele no meio delas porque era este o seu mundo do qual não conseguia  sair. Os  momentos mais tranqüilos, por assim dizer, passava ao lado da sua apaixonada assistindo à televisão, programas cômicos, novelas ou  partidas de futebol. Logicamente, regado com cachaça  que ela descia para comprar para ele numa vendinha próxima, Todos sabiam já que era ela a “ mulher” do doidão  ou então também uma cachaceira. Apenas aparecia na porta do estabelecimento já lhe vinham entregar a bojuda da caninha da roça. Acabou levando fama sem proveito, mas pela sua aparência  percebiam logo que era pessoa avessa aos vícios prejudiciais à saúde.  Nado dizia não poder ir comprar , pois se botasse o pé na rua , certamente, iria para a patifaria e por este motivo pedia à Tatá que o fizesse por ele. A realidade era que Nado  sempre foi muito preguiçoso e se comportava como um pachá .Isto porque sentia-se culpado nesta relação e repetia sempre que não queria alimentar uma coisa que não existia dentro dele. Tinha amado somente Maria Cândida na vida. E Renata pensava consigo que, além de  dependente cruzado, era mal resolvido afetivamente pelo tempo até então passado , muito conflituoso e sempre querendo que Tatá ficasse  feito um porto seguro ao seu lado.  Afinal, como decifrar o enigma desta esfinge?
V



Além da fantasia adquirida através da leitura de diversos autores seja de prosa seja de poesia, Renata usufruía de uma imaginação fértil além de um sarcasmo e ironia inerentes  à sua personalidade.  Embora transmitisse alegria pelos olhos expressivos e brilhantes, tinha dentro de si um sentimento de abandono desde pequena. Somente depois de muitos anos seja dentro ou fora do divã do psicanalista, veio a entender que era uma pessoa  triste, mas irradiava justamente o contrário.

Aos 24 anos, em agosto de 1984 , escreveu uma carta ou um bilhete a um destinatário inexistente. Nela dizia  que a chuva e o frio varriam a noite lá fora e se sentia, abandonadamente, só com um gosto mal pronunciado nos lábios de jornal amassado.  Prosseguia que  ficava se recordando quantas vezes seu peito se transformava em uma garrafa vazia. Constantemente, estava sendo exprimida.  Se calava dentro de si o silêncio moribundo dos cemitérios e isto tudo a deixava cansada.

Uma tristeza  pesava em seus olhos e os sentia enviesados devido a isto  e tudo se tornava mais pesado.  Era quando  o tempo permanecia cinzento, quando a chuva lambia a calçada com suas gotas prateadas e molhava a sua língua sedenta de sílabas e palavras.  Confessava  ter medo de reter esta sensação  por muito tempo carregando sobre as suas costas feito um fardo ou uma cruz.  Como tudo isto iria embora e  lhe deixaria de lado, ela mesma não sabia.  Sentia falta de  se ter nos braços de alguém. Alguém que conversasse com ela e que a chamasse pelo nome para estar certa  que de alguma maneira existia. Para qual propósito, não sabia.  Queria deixar o seu corpo  tremendo em algum leito repleto de calor e acordar vomitando letras, gestos e olhares.

  Tinha muito medo de entrar novamente em um estado de depressão contemplativa que a levasse à loucura. Vontade de falar que estava cansada de viver mesmo sabendo que não o tinha feito muito ainda. Tinha menos que 30 anos.  Queria relaxar o corpo muito tenso e repetia  estar sofrendo mais a cada dia que passava. Afirmava não saber se disfarçava bem.

            Durante muito tempo, esta forte sensação lhe dominava a mente e somente aos poucos foi se libertando de pensamentos que boicotavam o seu subconsciente, inconsciente e consciente.  Foi necessário, a conselho de seu psicanalista, entrar num atelier ou oficina de arte para poder extravasar esta angústia existencial que a detinha em vários aspectos da vida sobretudo na parte afetiva. Esfera da sua vida da qual mais sofria porque nutria por si mesma um sentimento de baixa auto-estima quando, na verdade, era uma pessoa inteligente, culta, bonita, simpática e altruísta.

 Foi, através da escultura, que encontrou o seu caminho para se desgarrar das amarras e nós que  atormentavam a sua existência.  A identificação e a paixão por esta arte foi de  uma proporção e imensidão que conseguiu  ir estudar  no exterior. Permaneceu quatro anos em Paris  e com o francês fluente que aprendera enquanto esculpia, começou então a dar aulas de francês quando de volta ao Rio de Janeiro.  Era de fato professora da língua de Charles Baudelaire , mas não de direito.

 Não possuía nenhum documento que a certificasse que era professora com licenciatura. Foi quando ingressou numa universidade e pôde assim estudar mais a fundo a língua francesa e obter os certificados de bacharelado e licenciatura plena.  O ingresso na faculdade de letras lhe fez  modificar o astral  de tal maneira que quando, por ventura, não comparecia às aulas por algum motivo , sentia que algo estava incompleto neste dia.  Mais tarde, os anos foram ficando monótonos e iguais com as mesmas pessoas, os mesmos assuntos, professores mais, menos ou mal preparados.  Não via a hora de complementar o curso e sair com o diploma pronto .Se algum aluno particular lhe perguntasse onde havia aprendido a falar tão bem, teria uma resposta e um certificado para mostrar.

  Começou a ensinar desde 1996 colocando anúncios classificados num jornal tradicional já extinto.  Depois de conhecer um grego que se tornaria seu noivo, Pancracius, por estímulo dele adquiriu um computador e daí a procura foi bem maior.  Colocava anúncios grátis em vários sites e muitos  alunos teve a partir daí, mas já não estava mais com o grego.   O noivo tinha intenção de casar com ela por um único  motivo: obter a cidadania brasileira. Estava no Brasil cursando mestrado em arquitetura e terminado o curso teria que voltar para  Atenas. No entanto, decidira morar, definitivamente, no Rio de Janeiro, cidade onde estava desde o tempo em que era clandestino e com o visto expirado. Como mestrando, tinha o visto legalizado. Seu propósito era ficar na cidade maravilhosa onde era tudo o que ele mais desejava na vida. Tinha, então, 51 anos e ela tinha 43.  Procurava um modo de  permanecer por  aqui e o mais certo que havia encontrado era casar com Renata.  Uma mulher culta, mais jovem do que  ele 9  anos, viajada, poliglota. Tudo em cima.   Renata gostou muito dele, mas também era um alcoólatra e cheirava pó.  Talvez fosse a sina dela  , parecia ser um imã estas pessoas com quem mantinha amizade e depois nascia o afeto, a paixão e o amor .  O casamento não foi levado adiante porque não tinha que ser graças ao próprio Pancracius. Vítima de câncer no fígado , morreu e ela soube de seu falecimento por telefone.  Foi um noivado turbulento e muito aflito devido à  sua dependência química  que ela ignorava ser de grau tão elevado.  Quando veio a falecer, ainda gostava dele e mantinha contato com um informante para ter notícias a seu respeito.  Foi assim que soube  do seu casamento com uma alemã, de nome Uta., não tendo sido consumado por ele  estar doente. Ao saber do seu estado crítico de saúde entrou em contato com ele  deixando-o feliz. Foi visitá-lo, mas o seu emocional estava muito abalado e somente o viu por duas vezes. Depois destas duas vezes, tratou-a tão mal pelo telefone que ela resolveu abandoná-lo de vez. Foi quando voltou de uma viagem a Búzios que soube de seu falecimento.  Morreu sozinho acompanhado do seu cachorro, pois  Uta não morava com ele.

            A partir desta experiência e de sua imaginação fértil, Tatá se preocupava demasiadamente com Nado devido ao mesmo retrato falado do companheiro anterior. Havia até um cachorro na estória dos dois.  Drogas e álcool, morando sozinho com  poucos recursos.  Como morava próximo  à casa dele, era sair somente de seu prédio, dar uns poucos passos na calçada e olhar para a direita e avistar a janela de seu quarto.  Foram muitas e muitas as vezes que ela  procedeu deste modo decifrando e especulando hipóteses sobre a janela aberta ou fechada com a luz do quarto acesa ou apagada.  Mil pensamentos vinham-lhe à cabeça, pois muitas das vezes os dois estavam brigados ainda que possuísse a chave do seu apartamento.  Poderia ir até lá para ver se estava tudo bem ou precisando de algo.  A verdade era que não ia enquanto ele não a chamasse, pois tinha medo de encontrá-lo com uma vagabunda que era bem do feitio dele este tipo de mulher e atitude.

 Suas hipóteses a amedrontavam ainda mais quando o celular não respondia, ou quando funcionava era pelo final da tarde. Durante do dia, ficava na aflição sem saber o que, realmente, estava acontecendo. Poucas foram as vezes ousou ir sem avisar com o coração apertado e o medo de encontrá-lo com uma vadia. Nunca encontrou.  Poderia até ter feito isto no dia em que telefonou para ele e respondeu que estava em casa com uma amigona” das antigas”. Deduziu logo que, de certo, era uma puta e adentrou o apartamento.  A porta do quarto estava fechada, bateu na porta e por debaixo dela jogou as chaves do apartamento. Foi um sinal de raiva, protesto como querendo dizer que não queria mais saber dele.  Foi incapaz de abrir a porta que não estava trancada para ver o que estavam fazendo e quem sabe cair na baixaria e pancadaria.  Achou que seria muito  rasteiro de sua parte se comparar a uma puta. Por isso, foi embora ao encontro de Lucas com quem já havia programado passar a tarde ao seu lado na cama. Foi num dia de jogo de Copa do Mundo quando o Brasil foi desclassificado pela Holanda.  O vento que soprava cá , soprava lá também.  Na volta para casa  encontrou Nado na esquina.  Disse que tinha ficado muito entristecido com o que ela fizera jogando as chaves e, mais uma vez, as devolveu a ela.

Era um tal de devolução de chaves para lá e para cá que foram incontáveis as vezes. O ato para ela tinha o significado de não querer mais freqüentar o apartamento dele. Mas, era como  filme de Glauber Rocha. Sem roteiro e tudo acabava bem.  Estas chaves vieram parar  nas mãos dela quando ele viajou para o Nordeste com o pai e pediu-lhe que tomasse conta de seu apartamento.  Em uma semana arrumou o apartamento todo jogando fora as roupas velhas, forrando o colchão com lençol e colcha e os travesseiros fedorentos com  fronhas dela.  Colocou um tapete de artesanato no chão do quarto e ao entrar na sala chegando de viagem, ele pensou que estava entrando no apartamento errado. Deparou-se com um pequeno pinheiro natalino em cima da única mesa decente e de mármore que tinha em sua sala minimalista. Era o mês de dezembro poucas semanas antes do dia de Natal..

Desde então, Renata ficou com as chaves da casa dele e até mesmo quando Nado não estava lá, ia para arrumar seu quarto e a cozinha, ou fazer algo de comer para ele e colocar na geladeira. Era para passar a madruga como ele sempre dizia já que não conseguia dormir.  Nado chegou até a dizer que  Renata era a pessoa que mais circulava naquele prédio e realmente era.

 De outra feita, uma das moradoras ao vê-la entrar a questionou se era  moradora.  Era bem cedo de manhã no horário do breakfast.   Ela foi breve e concisa. Disse que não era moradora e sim amiga de um morador, mas não mencionou quem era a pessoa.  Sua presença diária começava a ser notada e para alguns moradores até incomodavam por questões de inveja e ciúmes, pois tinha até as chaves.  Como um doido daquele porte poderia receber todo dia a visita de uma mulher que, ao menos aparentemente, parecia não ser drogada e muitas vezes entrava no prédio com sacolas de supermercado? Quem era esta tal mulher? Esposa, namorada, noiva, parente ou amiga?   E que entrava e saía numa desenvoltura a hora que queria, dizendo apenas: bom dia, boa tarde e boa noite com quem encontrasse pela  escada sem dar a mínima? E nas horas dos atritos, não tinha medo de nada e de Nado  e saía do apartamento gritando pelos corredores. Vai para a puta que pariu, vai se foder, vai tomar no cú! Sem a menor cerimônia. Escandalizando o que já tinha sido escandalizado há vários anos por ele.   Os vizinhos do prédio ao lado ouviam as brincadeiras e também as desavenças entre os dois doidos. Mas, depois estava ela lá abrindo o velho portão azul num sábado ensolarado e subindo a escada que dava acesso ao apartamento do seu amado.  Da onde vinha,o que fazia, por que fazia, como fazia, por que toda hora fazia?

Na verdade, o expediente de Renata era , praticamente, full time porque além de fazer o que tinha como obrigação nas suas aulas de francês y otras cositas más sempre estava ali ao lado de Túlio Bernardo. Foi somente em doses homeopáticas em que ele começou a apresentá-la a apenas dois amigos como a sua “amiga” e que participava como testemunha ocular das zoeiras que os três faziam com drogas e bebidas. Nado conseguia se segurar assim como Isidoro cuja dependência não era tão intensa quanto a de seu amigo.  Douglas chegava a ventar  como afirmava Túlio Bernardo. Por ser magro, o seu amigo além de alcoólatra, dependente de cocaína também fazia uso de crack e caminhava na rua conforme o vento o guiasse. Era tipo o vento levou. Eram já figuras conhecidas dos bares das redondezas que freqüentavam e que também eram pontos de venda de tóxicos. Em alguns não podiam passar nem na porta por estarem devendo.  Douglas, controlado pelos pais inutilmente, quando não possuía dinheiro para adquirir a cachaça nossa de cada dia, cometia furto nos supermercados. Além destes estabelecimentos, também furtou vários pertences da casa de Nado. Depois da bebedeira e cheiração, ele se adormentava e Douglas aproveitava o momento. Furtava algo e ia embora.  Somente dias depois é que         Túlio Bernardo se dava conta de que algo seu sumia e , por força, somente poderia ter sido pelas mãos do seu amigo larápio.

 Quando Isidoro se separou de sua mulher, foi morar com Nado durante um ano e dele também Douglas furtou várias coisas.  Para Renata, o que mais doeu  foi a jaqueta americana de jeans do Hard Rock Café que tinha dado a Nado por ficar muito grande nela.  Ele usou-a por pouco tempo,  porque Douglas não a livrou das suas mãos ladras.  Todas as coisas levadas da casa de Nado eram vendidas a preço de banana para serem convertidas em drogas ou cachaça.  Em uma ocasião de entrevero com Nado – o que era mais habitual – e sem vê-lo e ter notícias dele, encontrou Douglas na rua. Cumprimentou-o e viu que levava na mão uma faca de um jogo de faqueiro. Apenas uma faca. Dizia ele que iria levá-la a um antiquário para ver o valor e tentar vendê-la.  Saiu apenas com uma do conjunto já que não poderia sair com o jogo inteiro. Como sabia de sua fama de ladrão, concluiu Tatá que iria tentar vender somente aquela, se colasse , colou.  Foi neste dia em que , de repente, ao perguntar por Nado que andava desaparecido, Douglas exclamou:

- O Nado gosta de você!




terça-feira, 15 de novembro de 2011

VI

V

IV

 IV



Mais tenso foi o momento em que ela passou na casa de Nado no dia 14 de dezembro de  2007.  Naquela data, se recorda muito bem do casamento ao qual teve que comparecer  e que, depois, da cerimônia iria visitá-lo como ficara acertado entre ambos.

O acerto foi feito num bar quando o encontrou acompanhado de seus amigos patifes be bendo  todas quando era já ainda de tarde.  Renata estava a caminho do salão onde iria ser maquiada para a ocasião.  Depois de tudo, na volta do casório, toda maquiada e vestida a rigor, passou na casa de Túlio Bernardo e já entrando no apartamento, ouviu-o gritando:

- Renata, eu estou acompanhado! Estou até agora na patifaria! – disse-lhe.

De um primeiro instante pensou ela que estaria na companhia de uma mulher, mas era de um sujeito todo engravatado que sentado bebia cerveja. Quando a viu e foi apresentada a ele , o  dito cujo  começou a cantá-la de um modo tão chulo e  escroto que a deixou  com nojo e raiva. Chamava-a por todo instante de “ meu amor” e , ao mesmo tempo,  coçava o pau  e perguntava  se queria cerveja, se era casada, onde morava,  se dormir ali y otras cositas más.  Enquanto isto, Nado se vangloriava de  uma camisa  que vestia sem prestar atenção naquele sujeito mais parecido com um galã de padaria tipo um pereré pão doce. Mais tarde, esta camisa foi para o lixo. O rato roeu a roupa do rei de Roma.  Como o salto alto a incomodava assim como aquela elegância momentânea, resolveu ir  em sua casa para se trocar com a intenção de voltar. Já estava de posse da chave de Nado quando disse que mudaria de roupa e eis que, de repente, Túlio Bernardo, solta a seguinte exclamação:

- Vai que ele está te achando a maior gata!

Tatá ficou indignada  por achar que Nado estaria oferecendo-a ao amigo como se fosse uma mercadoria ou como fazia em relação a outras mulheres que freqüentavam o seu apartamento. Uma passava para outro . O alcoólatra, ao perder a censura, canta a mulher do melhor amigo e, às vezes, canta o próprio amigo e não se recorda no dia seguinte devido à amnésia alcoólica. Como o conhecia há pouco tempo , menos de um mês, somente uma ou duas semanas, desceu e, improvisamente, lhe veio à mente que os dois poderiam obrigá-la a fazer sexo de todas as formas já que se encontravam alcoolizados e entorpecidos. Na sua cabeça poderiam até fazer algo pior mediante o uso da violência. Chegou a sentir um mal estar e teve um mau pressentimento.  Algo muito forte, uma intuição de que deveria se ausentar daquele lugar o mais rápido possível, um temor se apossou dela que teve até uma queda de pressão. Estava já lá embaixo. Em um minuto, subiu de volta e entregou a chave ao seu proprietário alegando estar passando muito mal e que não retornaria mais. E era a mais pura verdade. Se viriam depois ainda outro dia. Na sua mente estava programado passar a noite ao lado dele, mas quando rolam bebida e droga , tudo se descontrola e vai para a casa do caralho.  Foi, exatamente, o que aconteceu. No bar à tarde , a proposta era uma e de noite nada do que tinha sido combinado, aconteceu. Nada era  previsível. Tudo imprevesível.

 No dia seguinte à noite, foi até a sua casa e da rua berrou por seu nome dizendo que gostaria de falar com ele a respeito da noite anterior.  Muito lhe deixou muito  indignada querendo dizer que tinha sido ele tão deselegante quanto ao  engravatado. E ele não se tocava da situação. Mas, não chegou a conversar com ele. Ao chegar à janela, ele disse que estava acompanhado. Renata não sabia se era de um patife ou de  uma vagabunda.  Entre um e outro, preferiu escolher que fosse, realmente, uma vagabunda.Pensamento e dedução femininos. Ainda perguntou-lhe se poderia voltar mais tarde e ele disse que sairia. Passaram dias, semanas e meses. Ela não o via mais e tampouco a janela do seu quarto se encontrava aberta. O dia inteiro estava fechada.  Uma agonia em seu coração.  Começou a dar plantão sentada no banco da praça onde se conheceram e ele não aparecia passeando com Barry como o fazia habitualmente.. Passava pelos bares do bairro e quando via alguém de costas e cabelo amarrado, sentia algo estranho dentro de si como se fosse uma mocinha de 15 anos. É ele! Pensava. Nada dele. Era uma mulher.  Aquela impressão de ter sido oferecida ao amigo como se fosse uma peça em um leilão público estava lhe incomodando. Será que ele não percebia que ela queria ficar ao seu lado conversando ou algo mais naquela noite?

Na verdade, depois de muitas conversas entre os dois, relembrando o ocorrido,  Nado explicou que aquele tipo de pessoa não iria lhe fazer nada e se ainda ela quisesse fazê-lo, ele  iria broxar. O que mais indignou Renata foi o fato de ele  tê-la convidado para dormir com ele no apartamento que não lhe pertencia.  Por pouco, ela não lhe duas respostas. A primeira era de que o apartamento não lhe pertencia e a segunda era de que se tivesse que dormir com alguém o faria com o dono da casa.  Certamente, também deveria  ser um outro broxado  diante daquelas condições. O engravatado passou a noite naquela pocilga refugiando-se de uma briga que tivera com a mulher e por este motivo encontrava-se ali.

Durante muito tempo, este episódio ficou guardado na garganta dela e como não pôde vomitá-lo no momento  logo após, acabou engolindo com dor  e desconfiança.  O primeiro momento em que estiveram juntos foi tão genuíno e simples como uma gota de orvalho pela manhã. Ou um pedaço de pão fresco cedinho que ela não acreditava ser possível ter acontecido algo tão baixo diante de si.  Foi , a partir daí, que começou a nutrir por Túlio Leonardo, um sentimento misturado de carinho e , ao mesmo tempo, de abandono da parte dele, mas  com desejo de vê-lo a toda instante.  Quando passava pelos bares , tentava encontrá-lo sentado  entre as mesas.  Estava com vergonha e magoada por no dia seguinte à provável noite que passaria ao seu lado já estar acompanhado de outra mulher.  Percebeu o quanto era piranhudo  e não hesitou em falar a verdade.  Era uma sexta-feira  seguinte ao dia do casamento quando voltou para tentar argumentar algo e dizer que era uma mulher diferente.  Não era daquele tipo a que ele estava acostumado que entrava em sua casa em troca de pó e sexo ímpio durante a madrugada inteira ou dias conforme o montante da sua carteira de dinheiro.  Renata não bebia,  somente sucos e refrigerantes. Desde muito cedo nunca foi de beber e tampouco não fumava maconha e cheirava cocaína. Havia, apenas, experimentado quando jovem na universidade onde  fez um curso de especialização em escultura em metal. Havia cursado durante anos a Ècole de Beaux Arts em Paris e falava fluentemente o francês.  Não foi na França onde experimentou a maconha pela primeira vez e sim no Rio de Janeiro.

  Os colegas do curso anunciavam que “viajavam” quando fumavam a canabis ativa e ela foi no embalo achando que também iria “viajar”! Aconteceu, justamente, o contrário. Ficou muito deprimida na tal viagem,os olhos vermelhos, uma tristeza invadia mais o seu coração, mais do que o  habitual.  Chegou à seguinte conclusão de que não fumaria e gastaria dinheiro para tal e como corolário ficaria deprimida.  Não tinha razão de ser.  A cocaína foi uma experiência mais assustadora com um grupo de amigos franceses que tinham vindo da França para conhecer algumas cidades brasileiras.  Foi num apartamento onde estava hospedada a colega Anne Marie que adorava brincos com motivos da fauna brasileira. Precisamente papagaio, arara ou com plumas de qualquer ave.  Ao prepararem todo o ritual para o consumo da cocaína, primeiramente, esquentaram por baixo com um isqueiro  um prato transparente. Logo após derramaram o pó e começaram a alisá-lo várias vezes com um cartão para deixá-la bem fina. Ao colocarem em carreiras, Renata foi a primeira a cheirar com uma nota de dinheiro enrolada que servia como canudo.  A primeira impressão é sempre a que fica.  Imediatamente, sentiu como se algum anestésico estava esfriando toda a sua cabeça e o coração começou a bater  de modo acelerado mais do que a sua batida normal.  Mil paranóias passaram por sua cabeça e gritava que iria morrer .Os franceses apavorados começaram a fazer massagens no seu peito e, simultaneamente,  movimentos com seus braços.  Foi uma sensação tão desagradável. Passado o momento, não teve a mínima vontade mais de continuar cheirando algo que lhe fazia mal.  Estas foram as duas únicas experiências com drogas e se admirava como os dependentes químicos que o faziam  estavam firmes e fortes ao menos aparentemente. Túlio Bernardo era um desses. Cheirava a  noite inteira e bebia porque uma coisa puxa a outra.  Conseguia passar  dois ou mais dias sem dormir e sem comer por conta do consumo da droga e do álcool. Era magro e sua alimentação consistia basicamente em quase nada de saudável. Sabia cozinhar, mas a despensa estava sempre vazia porque o pagamento que recebia já tinha um destino certo: álcool e drogas. O único que não passava fome era Barry.  Assim,  uma vez ouviu ele dizer ao cão:

- Coma aqui Tobby, aqui você é o único que não pode passar fome!

Na verdade, naquele dia do tal casório, o que realmente aconteceu talvez ele não teria atentado ao fato em si porque como cheirava muito , falava mais do que matraca contando loas e boas, não prestava atenção no incipiente tarado e seu convite chinfrim.

Foi necessário que Renata o recordasse depois de encontrá-lo quase dois meses depois ou mais e tudo aquilo foi colocado para fora. O que mais doeu não foi o fato do engravatado em si e sim a maneira como foi tratada ao ser lhe ser dito que estava acompanhado quando voltou à noite posterior para tentar falar com ele. Venho uma ponta de ciúmes como também de desconfiança porque naquela noite ele não saiu de casa. A luz do seu quarto ficou acesa por horas. Realmente, deveria estar com uma mulher usando e abusando de drogas e sexo. O que começou a sentir por ele foi um carinho escondido no peito, uma vontade de estar sempre ao seu lado porque tinham o mesmo nível intelectual, falavam idiomas, havia uma simbiose entre os dois que foi se acentuando com o passar do tempo. Tornou-se para dentro dele um conflito ou uma culpa que o deixavam  agressivo e às vezes dócil. Renata não entendia o porquê deste  comportamento paradoxal.  À medida que se passaram a se encontrar e a ficar juntos quem começou a ficar em conflito foi ela. Se não fosse a ajuda de uma amiga ao indicar um grupo de auto-ajuda para pessoas que se relacionavam com alcoólatras teria enlouquecido de certo.  A freqüência nestas reuniões onde todos partilhavam seus problemas em comum fez com que ela se tornasse menos aflita e estressada emocionalmente. Passou a entender que ele sofria de uma doença involuntária  e conhecida, mundialmente, como a doença da negação. A reunião era numa sala cedida por uma escola francesa cujo corredor de acesso estava repleto de estantes com livros  franceses. À cada reunião que comparecia, pegava um livro. Em seu quarto  já possuía  nada mais , nada menos do que  vinte e seis livros empilhados oriundos da freqüência ao grupo de auto-ajuda.

 Nado, tantas vezes, lhe negava respostas carinhosas às suas perguntas e contraditoriamente agia como se fosse um namorado. Esta palavra para ele era como um atentado moral ou físico à sua pessoa.  Não admitia, mas por várias e várias vezes cometeu o deslize de sê-lo como se, realmente, o fosse sem perceber como se entregava nas respostas, ações e reações tanto quanto sóbrio ou ébrio.

 Aos poucos, a harmonia criativa entre os dois foi surgindo e  se acentuando cada vez mais.  Cada um criava personagens fictícios com nomes bizarros e esdrúxulos que conversavam entre si numa outra estratosfera: a da imaginação e da fantasia. Chegaram a um ponto tal de troca de personagens e das próprias individualidades reais que não se entendiam e caíam em altas gargalhadas. Mil personagens foram criados: Cabra, Rosca Espanada, Merdo Lerdo, Sacripanta, Fariseu, Lady Louca, Tibúrcio, Tibúrcia, Aderogilda Amarga , Bonitão do Rocha, Hiperbolato, Entreverado, Catifunda e Deusely.  Este foi o primeiro que veio à cabeça de Renata.  Como não conseguiria ficar sem a companhia do ser amado que lhe havia pedido o divórcio, pediu a ele que lhe deixasse o seu clone. E aí, nasceu Deusely, o clone de Nado, somente que em forma de travesti, sendo este detalhe acrescentado por ele.

 De puteiro e antro de drogados, o apartamento passou a ser um verdadeiro hospício onde personagens nasciam, morriam  e se ressuscitavam com mais vigor para a intranqüilidade dos moradores do prédio. Não sabiam o que era pior aquele manicômio durante a madrugada ou os fins de semana com churrascos freqüentados por prostitutas, viciados e regados a  drogas e álcool. Os personagens se exaltavam, gritavam , corriam pelo apartamento fazendo estripulias e acabavam cansados de  tanta representação. Era um verdadeiro teatro no qual o ator mais completo era o próprio Nado.  Além de inventar personagens, dançava, recitava, imitava, pregava sustos os mais diversos em Renata,  fazia o diabo.  Renata ria de se acabar e disto gostava.

Ao menos assim, quando Renata passou a freqüentar seu apartamento, muitas mulheres deixaram de chamar da calçada da rua e das poucas vezes que o fizeram, ele não foi até a janela para ver quem era. No entanto, isto não queria dizer que ele não recebia em seu apartamento as mesmas viciadas com os mesmos propósitos de ficar na sua aba  em troca de pó por sexo durante a madrugada. Renata não dormia com ele por uma simples razão: o homem ficava virado e não dormia.

 A central de boatos e os paparazzi  de plantão começaram a veicular a notícia que o doido tinha se casado com a escultora mais doida do que ele. Diariamente, se encontravam e ela ficava até altas madrugadas com ele. Apenas, havia  uma diferença conforme ele mesmo dizia a ela. Uma careta tão doida que não precisava de drogas.  Valia-se da própria fantasia e imaginação.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Tevilá III

III



Na  primeira vez em que esteve na casa de Nado foi por mero acaso. Era uma noite fria de chuva fina, melancólica, incessante e ingrata na qual se encontrava no cubículo fétido de sua então amiga Letícia. Era ela camelô.. Montava uma precária barraquinha de caixote de feira para a venda de fichas de telefone – não existiam cartões telefônicos -  e cigarros a varejo na avenida mais movimentada de Copacabana.  Assim  , ganhava o pão nosso de cada dia de maneira honesta e também escandalosa  porque quando brigava com o pai dos seus dois filhos era uma baixaria descomunal. Era outro camelô com uma carrocinha onde vendia amendoins açucarados durante o dia inteiro no mesmo espaço. Era mulato e atendia pelo apelido de  Caboclo. Gritaria e pedaços de pau voavam pelos ares na rua a torto e à direita. Briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.



 Era em  frente ao local onde Renata trabalhava . Uma agência de viagens pertencente a dois árabes, Mohamed e Ahmed, verdadeiros terroristas em solo brasileiro e de hábitos, costumes estranhos, duvidosos  , tenebrosos  e sinistros para os olhos desconfiados  dela. Todas as manhãs era aquele ritual.   Mohamed não ficava na loja e sim em seu escritório confabulando ou tramando com outros árabes. Por volta das dez horas, ia à agência e tomava um cafezinho, ficava poucos minutos e os dois conversavam em língua árabe e cada um voltava para o seu trabalho diário.  Eram de Beirute, no Líbano. Mohamed quando chegou ao Brasil vendia bananas e Ahmed vendia, de porta em porta,  todo o tipo de bijuteria prateada ou dourada como é do gosto deles até virar fornecedor de várias boutiques chiques da zona sul da cidade.



 Foi a partir deste encontro cotidiano  indo ao trabalho que nasceu a amizade entre elas e  que se interrompeu devido à inveja que Letícia  nutria por Tatá. Passaram a se encontrar mais vezes. Para aumentar o orçamento da família -  tinha três filhos -  também , vendia churrasquinho nos finais de semana e Renata era sua freguesa assídua quando a encontrava pela esquina das ruas, namorada ainda de Lucas. Era sempre no mesmo ponto a uma quadra da praia de Copacabana próximo a uma praça muito freqüentada durante o dia pelos aposentados e  desocupados que jogavam biriba e dama. Na parte da noite era a vez dos dependentes químicos, homossexuais, traficantes, piranhas e do próprio Nado. Uma vez chegou a comentar  à Renata que vira  seu amigo Douglas deixando-se ser chupado por um gay em troca de pó. Assim eram as suas noites e madrugadas afora.



Entulho chamou Fernanda Letícia  para ver se algumas roupas das filhas que ainda  restavam em sua casa após a separação. Talvez  serviriam para a filha dela mais caçula , Helena, do segundo companheiro, um alcoólatra in memoriam com o fígado tão esfacelado que parecia uma esponja. Ocloaldo, o nome da criatura. Nunca ficava muito tempo no emprego por causa da bebedeira. Depois de dois ou três meses , era despedido e com toda razão, pois chegava cambaleando bêbado e trôpego no trabalho. O que era de se surpreender era a sua qualidade de ótimo motorista de madame  quando sóbrio.



Tata entrou naquele apartamento completamente vazio e fedido como uma simples companhia e reparou nas teias de aranha no teto descascado. O quarto de Iracema e Eleonora estava muito empoeirado e ela começou a espirrar muito. Achou de uma pobreza medonha a ação de Letícia.  Abria as gavetas emperradas do armário à cata de roupas para sua filha como se fosse um urubu farejando uma carniça já no osso. Olhos ávidos, esbugalhados, negros e carregados de cobiça. A maioria das roupas era composta de vestuário de grife  importada.



 Renata  resolveu ir embora de repente como era de costume. Os seus rompantes já conhecidos pelos seus amigos. Não era nada pessoal contra eles. Apenas uma das  conseqüências de sua personalidade.  Quando estava em um ambiente que  já sentia a iminente prorrogação contra os protestos de gregos e troianos, ia embora.  Foi quando Nado lhe disse que a acompanharia até a portaria e ela  julgou o gesto de uma delicadeza ímpar.  Tão cavalheiro! Poderia descer sozinha . A porta social e o portão azul, o velho portão azul cansado de guerra na tarde de um sábado ensolarado, que dava para a rua estavam abertos. Primeiro, perguntou o nome dela. Foi quando, dócil e descaradamente, Nado quis saber seu estado civil.

            - Você é casada?



Renata não era casada nem nunca tinha sido e o sonho de se casar já tinha ido para o beleléu.  Havia somente conhecido pessoas certas nas horas incertas e pessoas incertas nas horas certas. Com o decorrer do tempo, por si  só, concluiu que a mulher inteligente jamais se casa. Respondeu-lhe que era casada e , diante desta  resposta, ele engatou a seguinte exclamação sem maiores rodeios, rebuscamentos  ou floreios, ali na lata, um tapa na cara:

            - Poxa, como gostaria de dar uma trepada  gostosa contigo agora!



Ela foi embora sem responder , achando-o atrevido, mas ao mesmo tempo sincero. Nado estava vestindo apenas uma bermuda preta e o peito estava nu. Era seu modelo com ou sem chuva.  Sua única bermuda preta e de listras verdes laterais ainda limpa .  As camisas eram  de malha quando as usava. Estavam  sujas, suadas e manchadas de água sanitária por conta exclusiva de sua tia Darcília, ou tia Dadá, irmã de seu pai, que  as lavava sem o menor zelo ou cuidado. Talvez por causa da idade avançada. Era uma octagenária solteirona que pelo sobrinho alimentava um amor maternal e que a acompanhava na compra semanal em um supermercado local muito movimento em decorrência de vários produtos com preços acessíveis e em promoção.

Quando ele se lembrava de levar suas roupas à casa dela -  o que não era seu hábito - tampouco as trazia de volta para vesti-las. A sorte é que a metereologia contribuía neste aspecto para que se vestisse assim. Dois anos mais tarde, Renata lavou todas as suas roupas na própria casa dele sem máquina de lavar, recuperando-as do mofo e jogando fora as que os ratos tinham roído e com um sabão em pó muito potente.  Tudo estava encardido e já perdendo a cor original.   Separava-as por cor  e as deixava num único balde de plástico  que fora de Olavinho.  Tinha sido um dos muitos inquilinos que tinha morado em seu apartamento já que estava vazio e com um quarto livre. O quarto das meninas.  Era somente colocar um colchão no chão e de uma trouxa fazer um travesseiro e pronto. Virava uma cama. Antes dele, um apontador de jogo de bicho, também alcoólatra,  outros moraram por um certo  período  com Entulho. Período este que correspondia  , exatamente, ao momento no qual ele  percebia que estava sendo enganado, desrespeitado, roubado  ou sacaneado quando dos seus acessos coléricos e manias persecutórias.

. Eram pessoas de más índole e conduta envolvidas em transações clandestinas, tenebrosas e escabrosas. Apesar de todo este passado e presente dos seus eventuais inquilinos, Nado precisava deles. Não do dinheiro do aluguel  que para ele não era importante , mas da companhia. Era adepto do avesso do dito popular. Antes só do que mal acompanhado. A solidão invadia tanto o seu âmago e suas entranhas  sentindo somente falta das filhas que passou a adotar outro. Antes mal acompanhado do que só. E daí geravam brigas, desavenças, conflitos, brigas, e eticetera e tal. Acabava sozinho novamente e com má fama de brigão, louco e  temperamental. Um de seus inquilinos era proprietário daquele bar próximo à sua casa onde passava o dia bebendo. Chamava-se  Lindolfo e toda a sua mercadoria não continha nota fiscal quando comprada além de a validade de vários produtos estar  vencida e sem alvará de licença legalizado para o pleno funcionamento do estabelecimento: um pé sujo dentro de uma galeria.



             Renata dizia que tinha aberto uma franchise  de lavanderia naquele apartamento no quarto que fora das filhas. O secador armado era enferrujado e já tinha sido jogado fora por Nado. Também Ariovaldo, braço direito de seu pai que havia feito o mesmo, mas não se sabe como sempre estava ali. Sempre voltava. Pernas firmes e cruzadas  como se pedisse por misericórdia ainda para ser utilizado nos últimos estertores. Até que um dia foi jogado fora  , definitivamente, na mudança como outras bugigangas e quinquilharias cheias de teias de aranhas e traças comendo seus poucos livros. O mais significativo para ele era o do poeta Charles Baudelaire  e Cartas de Vincent a Theo  emprestado a  ele pela sua então sua amiga  apaixonada. Nunca o devolveu , achando que tinha sido presenteado ou mesmo acreditando que quando esteve na casa dela, tinha trazido de lá após escolhê-lo entre vários livros.

             Diante da exclamação sobre a hipotética trepada, Renata foi embora, mas não estava  surpresa devido  à troca de olhares na praça. Ao contrário, pensou, perguntou a si mesma:

            - Quem sabe um dia?

            Após a separação, Nado passou a promover em seu apartamento churrascos todos os finais de semana freqüentados por seus amigos alcoólatras e putas de várias idades regados à  droga e bebida.  Como era tido como louco, os vizinhos não se atreviam a abordá-lo em sua conduta durante a realização da comilança.  Do churrasco partia-se para as orgias  com gritarias , escandalizando os moradores do prédio e vizinhos que perduravam , às vezes, dois ou mais dias. As putas se tornavam suas “ amigas”, algumas chegaram até residir no quarto desocupado e com uma  proveniente do Nordeste e jeitosinha, Nado tinha decidido morar com ela e buscar seu filho naquela região.Todavia, a puta vacilou legal porque viciada em pó, acabou descobrindo entre os pertences de Nado um relógio da marca Patek Philip, herança de sua avó paterna e vendeu-o a um desconhecido por um preço de banana para poder comprar pó.  Túlio soube por terceiros que a viu negociando o relógio francês e quando a puta chegou em casa meteu-lhe a porrada. A prostituta levou tanta bifa daquele homem que caiu no chão e depois de tanta  porrada, arrumou suas roupas e meteu pé. Deus sabe para onde.      

            Várias foram as putas que Túlio Bernardo teve e  mantinha relações  simultaneamente o que fez Renata Morelos desconfiar de sua insatisfação sexual com ela um dia.   Percebeu que parecia que algo estava faltando e que este algo deveria ser uma outra mulher para poder satisfazê-lo porque já estava acostumado com tanta putaria e fodelância em trinca ou mais. Seu relacionamento  sexual com Renata começou a ser algo mais genuíno e natural com  brincadeiras jocosas e, às vezes, o faziam tanto que o ato em si já haviam esquecido de concretizá-lo. Foi assim que Túlio Leonardo ficou conhecendo João Pestana quando fechava os olhos parecendo querer dormir. Renata reclamava, mas dizia ele estar acordado somente com os olhos cerrados. João Pestana foi um personagem criado pelo escritor paulista , Monteiro Lobato, e que queria dizer nada menos, nada mais que o sono que estava por vir. Dizia ele que estava viajandão como o nome de um antigo trailler numa praia distante que vendia sanduíches. De outra feita, Renata insinuou a contar-lhe um segredo e disse, ao mesmo tempo, que não poderia dizer a ele, pois deixava de ser segredo. Segredo guarda-se para si próprio. Uma noite, Nado pediu a ela depois de terem tido relações o divórcio. Ela lhe respondeu a impossibilidade de dá-lo porque não eram nem casados. Renata afirmava que nem em filme de Luis Buñuel isto aconteceria. Na  verdade, algo feito um mosaico de sentimentos confusos e difusos estavam sendo batidos no liquidificador do  coração dele. Túlio Bernardo estava confuso ali diante daquela que seria a mulher, não da sua vida, mas sim a que em sua vida, mais teve afeto e carinho por ele misturados com preocupação como se fosse uma mãe sem nunca ter tido um filho e que não o deixava em apuros dentro de suas possibilidades.  Sempre armava um modo ou jeito para que nada lhe faltasse durante o período deste relacionamento. Quando pensava que estavam dando dois passos à frente , na verdade estavam indo cinco para trás. E dez para trás significavam quinze para a frente que a deixavam confusa e aflita sem entender a mecânica e dinâmica do alcoolismo e das drogas na cabeça dele. Era brabo. Como era brabo!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tevilá

TEVILÁ

I

                                                                   
           Muitos anos após ter atravessado o Túnel Velho que liga o bairro de  Botafogo a Copacabana ou vice-versa,  acompanhada de sua colega de ginásio, Alma Nívea,  Renata Morelos, aos 13 anos, nunca poderia imaginar que,  35 anos depois, se apaixonaria  pelo irmão dela, mais jovem e caçula de três irmãos, Túlio Bernardo. A família era descendente de mexicanos. Tiveram como raiz ancestral  José Maria Morelos y Pavón, o primeiro a lutar pela independência do México e que foi capturado e executado pelo Santa Inquisição em 1815. Era seu tataravô e dele, através de gerações, a família  conservou o sobrenome   e o costume de comer tudo apimentado nas refeições.
          Conhecido na família como Nado, e pelos patifes e fiéis correlegionários como Entulho, era um homem muito inteligente que  esbanjavao intelecto com pessoas de neurônio de samambaia de plástico ou ameba. Mostrava-se  aos demais através de seus discursos ou verdadeiros comícios, completamente inebriado e sob efeito da cocaína e maconha, pois sofria de dependência cruzada. Não   se lembrava e que , algumas vezes, o  conduziam direto para alguma delegacia ou hospital psiquiátrico dada a proporção do seu palavrório verborrágico e provocativo, insistente,  prolixo, ininterrupto e inacabável e que, frequentemente, terminavam em porrada, sangue, suor, lágrimas e ranger de dentes. Era também, ao mesmo tempo, um homem tão sensível como a corda de um violino  e que, somente, a expressava  a profundidade de sua sensibilidade quando estava em estado  in vino veritas. Era um poço de sensibilidade.
         Estudou em uma instituição religiosa de ensino renomada durante um certo tempo até ser expulso pelos padres jesuítas que não o toleravam mais. O fato ocorreu devido às suas peripécias com os seus colegas e já, desde cedo, tinha propensão  para  adicção e contava sua epopéia ao longo daqueles anos à Renata  quando se conheceram, em um verão de 2007, com o peito estufado feito pombo, ego inflado e brilho nos olhos, gesticulando-se  e revivendo as situações dando a entender, precisamente, que era o mentor intelectual das brincadeiras mais pesadas,  mais ousadas e mais criativas segundo a sua versão e atuação. E  Renata o ouvia e ria , ao mesmo tempo, dos fatos ocorridos e inusitados que jamais ouvira na sua vida como a privada que foi lançada do sétimo andar  de um edifício onde estava sendo realizada uma festa de debutantes da qual participou.  Dançou uma valsa qualquer  logo depois do vaso sanitário ter sido lançado  do décimo andar por ter tido a válvula  enguiçada. A água jorrava como um chafariz feito a Fontana de Trevi, em Roma.
         Desde pequeno, Entulho tinha desajustes entranhados em suas vísceras que o afastavam da família e ninguém entendia o porquê  deles que o atrapalhou em várias esferas da vida familiar, conjugal, social, intelectual, profissional e por que não dizer sexual. Álcool, maconha e pó não combinam apesar de ele ter gerado filhos à base de drogas com uma mulher do mesmo nível tóxico  ou talvez pior. Era mais velha e cascuda. Chamava-se Adelaide  e  era mais conhecida como Laida.  Sabia ganhar dinheiro e muito no meio em que atuava. Celebridades artísticas e famosas de grupos teatrais e cinematográficos de carreiras brilhantes tanto como as que se faziam para cheirar o branco como assim chamava em meio aos amigos tão dependentes quanto ele.
         Vizinhos que o conheciam desde a infância nunca iriam reconhecer aquele menino de 5 anos que ficava arredio ao ver o pai e amedrontado, atrás das portas,roendo pães envelhecidos pelo vento  Até .  até a sua idade madura tinha receio dele. Algum sentimento estranho dominava seu pai em relação a ele pelo fato de ter sido Nado concebido como uma isca para que sua mãe, Judith, in memoriam pudesse, então assim, segurar um casamento que já ia mal das pernas, mas que foi inevitável. O casal se separou tempos depois e o pai de Entulho foi morar com  uma mulher de nome Creusa que . com ela, há anos, mantinha uma relação extra-conjugal.  Era  sem muitos dotes intelectuais ou artísticos, mas os físicos compensavam a tamanha burrice. Parecia uma caipira bronca que, em toda a sua vida, nunca subiu em elevador ou viajou de avião por conta da sua ignorância ímpar e crônica, mas que soube fisgar o pai de Bernardo, também chamado Túlio no  momento justo. Foi morar numa mansão com piscina e churrasqueira rodeada de regalias e mordomias em um condomínio nobre da cidade.Também nunca se atreveu a subir numa escada rolante.

          Parece que, somente na velhice quando o seu pai  se aposentou da magistratura e também do magistério, começaram a se relacionar mais ainda e tanto que, muitas vezes ,  entravam em conflito por coisas  banais. Cada qual não expressava  o verdadeiro  amor que um nutria pelo outro, sentimento este atrasado, incubado, ficado para trás, in illo tempore. Os atritos eram constantes e para tentar esquecê-los, Túlio Bernardo se entorpecia de  drogas e cachaça num ciclo vicioso enterrado numa cama como se fosse um jazigo  mais do que perpétuo recuperando-se da ressaca, do cansaço, das paranóias e neuroses. Os elementos conjugados o levavam a este estado depauperado física e emocionalmente . Mantinha-se, assim, durante dias e até semanas com o celular  desligado e se alimentando precariamente. Passava o dia inteiro quase que dormindo. Quem dorme muito, vive menos.  Via  filmes repetidos na televisão cujas tramas os revia de trás para frente e de cor e salteado. Muitas vezes as alterava em sua imaginação e fantasia em demasia para se sentir um pouco menos infeliz.
           Entulho  morava sozinho depois de ter sido abandonado por Laida com quem viveu treze anos e do casamento tiveram duas filhas: Iracema e Eleonora. Em suas conversas com Renata, talvez a única mulher com quem manteve uma relacionamento sem ter como base as drogas e  a bebida,  afirmava que tinha expulsado a mulher de casa. A verdade era que Laida  tinha se auto-expulsado  porque  ninguém agüenta viver com um alcóolatra dependente de drogas ainda que ela também gostava tanto como ele de um  branco. Sua filha mais velha foi concebida   com o casal completamente entorpecido pelas drogas.
           Soube do motivo da separação através de  Fernanda Letícia , uma amiga cuja amizade era somente uma via de mão única da parte de Renata  que a chamava pelo seu segundo nome. Ela morava num pequeno cubículo anexo ao prédio onde Túlio residia em uma praça, em Copacabana.O  padrasto dela tinha sido porteiro deste edifício e sua mãe, por sua vez, foi babá dele. Zenaide, in memoriam, era seu nome e após a morte de seu marido continuou morando no mesmo local ainda que não tinha mais direito de residir lá. Anos depois, veio a falecer vitimada de câncer no estômago e Letícia continuou a viver no  lugar contra a vontade dos moradores.
          O prédio era no estilo art decó, mas estava completamente descaracterizado e abandonado, pois não havia mais  porteiro e os moradores eram de procedência duvidosa e sem cuidados .  Cada qual possuía uma estória misteriosa ocupando cada apartamento. O único que, de direito e de fato, era proprietário de um deles era a Vossa Excelência o eminente juiz  aposentado , pai de Bernardo. Aos 46 anos, ele ficou sabendo que, na realidade, o imóvel estava no nome de sua mãe e até Renata ouviu a conversa entre eles numa sala minimalista com apenas um sofá de couro cujo assento estava carcomido e roído pelos ratos que coabitavam a casa Uma verdadeira pocilga em seu apartamento. Era de noite e Nado estava deitado na cama enquanto que Renata estava na cozinha preparando uma salada de ovos. Seu pai foi adentrando pelo apartamento chamando-o em meio à escuridão da sala sem luz . Assim, ela ouviu o diálogo dos dois e,  prontamente, Túlio saiu com o pai para resolverem a questão da transferência do nome do proprietário do apartamento.
         Somente começou a tomar jeito de um lar decente através da disposição de seu amigo e inquilino, Olavinho , in memoriam, em jogar fora 23 sacos cheios  de lixo que  Tata, como um dos muitos apelidos que Entulho lhe alcunhava,   tinha recolhido da casa durante um dia em que ela, mesma, não se recordava mais em sã consciência como conseguiu tamanha façanha higiênica. Fedorentos e  acumulados na sala fizeram parte da decoração do recinto durante quarenta e um  dias e alguns minutos s. Era uma instalação artística,anti-ambientalista e fétida. Foi na época em que Entulho viajou para o Nordeste acompanhando seu pai  para o levantamento topográfico  de propriedades latifundiárias e  que foi um verdadeiro  fracasso. Túlio, logo logo, descobriu uma boca de fumo, se entregou à bebida e também aos lençóis de uma prima mais velha, gorda, inculta, histérica, no atraso e  distante de nono ou décimo grau com quem passou três dias fodendo, bebendo,  cheirando e fumando maconha. Deus sabe como! Agüentou as regalias do parentesco longínquo que a velhusca pôde lhe oferecer com suas  manias, teimosias e tiques nervosos e grana para bancar os vícios do primo carioca.  Ele gostava de mulheres mais velhas, rechonchudas e de seios fartos, opulentos e caídos que os remetiam à sua infância.
          Foi, a partir desta viagem infrutífera, que Renata passou a ter consigo a chave da pocilga dele sem ter que precisar gritar pelo seu nome da calçada da rua para que a jogasse pela janela do segundo andar e despertar a atenção dos fofoqueiros de plantão e dos  paparazzi. Entulho lhe confiou a chave de seu habitat, mesmo ciente de que confiar é bom, mas não confiar é melhor . Um velho ditado italiano. Seu apartamento não possuía interfone porque o prédio era um esculacho só  e tampouco campainha. Alegava ele que a tinha retirado para não ser incomodado pelos  funcionários que deveriam marcar as caixas de gás, de água e  de luz. Da sua janela tinha-se uma vista panorâmica  da praça onde foi o local que os dois se conheceram quando ainda era casado.
 A mulher e suas duas filhas caminhavam à frente dele e ele, por sua vez, vinha atrás e olhava, descaradamente, para Renata, sentada em um banco e esta, por sua vez, o mesmo fazia em relação a ele do mesmo modo desavergonhado. Eram olhares docéis e de interrogação por parte dela que se perguntava se era ela que estava olhando para ele ou ele olhando para ela ou os dois que se olhavam ao mesmo tempo um para o outro, justamente porque ele o fazia , ainda que não o visse na presença de Laida.  Poucos  minutos passados havia feito o mesmo caminho em torno da mesma praça, do mesmo banco, das mesmas flores e do mesmo jardim sem perceber  nada. Entulho sentia-se atraído pelos seios de Renata marcantes com uma camiseta branca e salientes com seus mamilos duros feitos peras maduras e que o deixavam de pau duro. Durante o seu trajeto  sentia um um  desejo  nas mãos de segurar as tetas daquela que  viria a ser  algo indefinido em sua vida durante um tempo. O tempo da diferença, da briga consigo mesmo, da negação e do carinho que lhe dava, até então,ao qual não estava mais acostumado e que nunca mais teria nem em  música com versos derramados em inglês com o clichê:
          - You never find someone who loves you like me!
             Desde a rua de baixo, já vinham brigando, discutindo segundo ele contou a Tatá e ela, realmente, sabia que quando o marido vai na frente e a mulher vem passos atrás não acompanhando-o, boa coisa não era. Era entrevero na certa. Na rua e em casa, o pau quebrava e Entulho jamais deu uma bifa, como assim denominava a palavra tapa,  em Laida segundo seu depoimento  no qual ainda afirmava que apanhava muito mais do que batia. Realmente, ela nunca apareceu na rua com hematomas ou escoriações generalizadas  pelo corpo gordo, disforme, e pesado do qual caíam as banhas feito queda de uma cascata. Em sua cabeça havia galos e galhos porque era  chifrada  na maior diplomacia com direito a cartão de crédito estourado. Tinha que entrar em casa quase que agachada tal a quantidade de chifres que levava do marido infiel para poder passar pela porta. Fiel à sua infidelidade.  Era também um pouco corcunda e levemente estrábica.  Até uma empregada da casa, Divenilda, ele passou o cerol alegando ter sido assediado por ela  enquanto tomava banho como narrou à sua amiga.  Enquanto Laida trabalhava, ele a traía pela casa em todos os cômodos nas mais variadas posições eróticas que tanto apeteciam aos dois despudorados e desavergonhados. A traição doméstica, literalmente doméstica,  não o livraram do medo de que  ela viesse a dar com a língua nos dentes e contar à patroa que os dois fodiam quase  diariamente. Saíam para fazer o supermercado como se fossem casados dada a intimidade dos dois. Divenilda sentia-se dentro do carro como se, na realidade, fosse a esposa do oceanógrafo e  professor universitário.

           Túlio foi incapaz de jogar para a lixeira os 23 sacos do próprio limbo que era a sua casa, pois este tipo de atitude não combinava com a sua pessoa como se fosse um lorde inglês ou pachá da Pérsia. Nem banho ele tomava com regularidade. Era um sujeito sujo e disso se orgulhava ao se referir à geração de poetas norte-americanos intitulada beatnik da década de 50 que escreviam poemas à base de alucinógenos elevando a vida marginal , o uso das drogas e a libertação do corpo e da sexualidade. Seus poetas preferidos eram William Buroughs e  Allen Ginsberg enquanto Tatá possuía livros e mais livros de poesia nerudiana e de prosa latino-americana como os de Isabel Allende, Mário Vargas Llosa , Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges.
         A vida desregrada que levava e que se deteriorou após a separação  o tornaram mais dependente das drogas porque da bebida já a consumia desde  a adolescência. Quanto à geração dos poetas, em suas respectivas biografias nunca foi mencionado a falta de banho ou de higiene pessoal e íntima. Não  tomava banho porque era mesmo um sujeito sujo, largado, desleixado, relapso e de baixa auto-estima ou para melhor especificar de rasteira  auto-estima. Afirmava ser beatnik com uma convicção sem Tata ter visto a sua “vasta produção” de poesia talvez interrompida pelos afazeres domésticos e o nascimento das filhas.  Ele poderia vir a ser um verdadeiro poeta se não fossem seus poemas escritos ortograficamente errados, pois não era um letrado ou literato apesar de ser culto e poliglota. Não sabia, por exemplo, escrever vocábulos em que o grafema era X ou CH entre outros. Era oceanógrafo, mas atuava no ensino superior quando podia numa universidade religiosa de peso. Comparecer à sala de aula era somente quando estava de boa maré, mas muitas vezes amanhecia já de ressaca de tal proporção e envergadura como o mar encapelado, agitado  que o impediam de professar a sua carreira acadêmica. Estava entediado até o momento em que foi dispensado pelos padres dominicanos. Um alívio para a comunidade acadêmica.
          Chegava ao trabalho com o cheiro de bafo de cachaça e durante os dez anos como professor sequer corrigiu ou leu uma prova dos alunos e dava as notas assim como ao Deus dará e sempre a mesma pontuação: 7,5. Houve uma  delas em que os enunciados estavam tão contraditórios e herméticos que um dos professores da universidade foi até a sua residência discutir o fundamento das questões tão dúbias  e nebulosas.  Renata concordava com as perguntas do exame, realizadas num pedaço de guardanapo de papel rasgado de um botequim próximo à sua residência onde ele passava o dia inteiro se embebedando. Era necessário concordar , pois havia aprendido em casa que “ com maluco, não se brinca” e era assim como era visto pelos vizinhos das adjacências devido às suas ações, reações, comportamento, atitudes e postura. Aprendeu o provérbio desde pequena com sua babá, Consolación, uma colombiana que ainda morava com ela e sua família, que a tinha como uma mãe de criação e não como uma doméstica. Mantinham uma cumplicidade e se entendiam somente com a troca de olhares,  pensamentos e muitas risadas de coisas cotidianas que ocorriam e mereciam umas boas gargalhadas.
          Entulho impunha medo do alto de seu 1,87 m, de mãos grandes e pesadas, capoeirista, ex- jogador de basquete  e corpo, ultimamente, mais forte porque na época em que Renata o conheceu, ele era magro, barbudo e com os cabelos compridos e castanhos claros amarrados uma ora com rabo de cavalo e outra ora com um coque de uma madame francesa em decadência berrante. Quando soltos caíam pelos seus ombros e parecia um Jesus Cristo ou   Tiradentes piorados. Era de pele clara e  seus olhos eram de cor cambiante e profundos quando tirava os óculos sem os quais era próprio um cego perdido em um tiroteio.  Tinha uma  lábia triunfante que conseguia cantar todas as mulheres somente depois de muita bebida e indagando com uma  frase que virou seu bordão de galã barato de boteco pé sujo:
         - Tamu ou não tamu nessas carni?
           Era a sua fala melódica, envolvente  e cadenciada quando sóbrio. Parecia um menino tal qual como sua irmã o chamava por Nado e o colocava em meio às suas  bonecas preferidas quando tinha ele cinco anos de idade. Desta lembrança guardava dentro de si com a sensação de ter sido abandonado pela infância por Nívea e  pela própria vida. Uma lembrança muito longe e imorredoura que o incomodava no peito e o fazia chorar nas muitas conversas com Renata repetindo como era tratado e abandonado por Alma Nívea. Em noites de lua cheia se coincidente com o final do mês, virava uma matraca e não parava mais de tagarelar parecendo um ventríloquo desacelerado.
         De cabelos presos, o rosto se tornava mais gordo. Foi um rapaz bonito e sem barba o continuaria sendo mais, porém o fato de ser barbudo não lhe  roubava a beleza de seu rosto e também do seu coração embora acometido de tantas perturbações, vodus penetrantes, espíritos obsessores que o atentava em pensamentos  e aflições mil. Foi assim que Renata Morellos aturou a convivência com ele até um certo tempo, pois quando se mudou para um bairro do subúrbio, a tal relação de “amizade” que tanto ele propugnava aos quatro cantos do planeta e a seus dois únicos amigos Douglas e Isidoro e a ela própria,  não era mais a mesma. Ir para aquele bairro distante e sem opções de lazer a deixavam enfadonha. Mais ainda quando ele se enrolava numa colcha de flores azuladas e passava o dia inteiro vendo os programas televisivos fúteis e inúteis na depressão,angústia, carência, drogas, trevas e compaixão no sofá de couro preto e de alvenaria na única sala da nova moradia em condições humanas habitáveis  habite-se. Chamava-o como a sua própria tumba e com toda razão. Ele inventava   muitos neologismos e dizia estar tumbalado. Era assim criativo Túlio Bernardo e Renata, não ficava por menos. Tratava-o, carinhosamente, por fariseu, sacripanta y otras cositas más no momento adequado.  Na ira dos deuses era mesmo  filho da puta quando não o mandava para a casa do caralho ou se foder enfurecida até os ovários.






















II

          Renata  o encarava com olhares dissimulados do banco da praça porque o seu caminhar e  o seu porte a atraíam sem se dar conta de que a embalagem nada tinha a ver com o conteúdo.  Nunca iria supor que Túlio Bernardo era do tipo do alcóolatra que já amanhecia bebendo cachaça e a da marca mais vagabunda e barata como seu café da manhã ou breakfast,  que, mais tarde, ela teria que comprá-la para que ele pudesse atravessar o dia como um barco o faz  até a outra margem do rio. Nem tampouco uma das vezes que o encontrou em seu apartamento tinha vivenciado uma cena dantesca. Ele, de cócoras diante do vaso sanitário, vomitando até as tripas em uma sequência, demasiadamente, acelerada e por pouco não coloca o fígado para fora. Expelia as próprias tripas e uma água esverdeada pelo ânus numa simbiose performática como nado sincronizado. Renata ficou mais abismada no dia seguinte, the day after, quando o encontrou pela tarde. Já sanado dos vômitos e da caganeira  , saiu à tarde acompanhado de seu amigo Douglas para, simplesmente, beber novamente e isto ela não entendia como um sujeito iria repetir o que lhe causou mal a  noite anterior. Era  inconcebíbel, mas era verossímel.
            Foi, na noite anterior, em que sentado em seu leito de colchão desforrado e esfiapado com lençol transparente, inexistente e incolor admitiu, de cabeça baixa, e a cabeleireira caída por trás de que era um alcóolatra. Muito depois, Tatá haveria de se lembrar desta cena e, ao mesmo tempo, dos diálogos em que mantinham. Dizia não ser alcoólatra  levantando a bojuda ao ar como se estivesse brindando no vazio de sua existência algum acontecimento feliz da vida.  Poderia parar de beber a qualquer momento e quando bem quisesse , era uma questão de tempo, assim o dizia à Renata, mas a verdade é que o alcoolismo é uma doença degenerativa e sem cura  em que a pessoa só tem três caminhos: a loucura, a internação e a morte. Além de perder a dignidade, a família, o emprego, os amigos, a própria censura como ocorre aos alcoólatras em todo lugar do mundo atingindo os dois sexos, todas as etnias, todas as idades  e classes sociais, Entulho chegou até a perder o próprio animal de estimação, herdado de suas filhas durante a separação.
           Um cachorro de pequeno porte, de pelagem branca e de pedigree    que se chamava  Barry em homenagem ao cantor norte-americano Barry White, nome dado pela sua ex- mulher ao pobre canino que padeceu poucas e boas e também cortou um dobrado ao lado dele.  O desaparecimento de Barry nunca foi, totalmente, esclarecido para Tatá, mas segundo informações de fontes fidedignas e , ao mesmo tempo, dotadas de sentimentos por animais domésticos o pequeno cão ficou abandonado durante duas semanas  sem eira e nem beira pelas ruas, sendo assistido por vizinhos das adjacências, ao Deus dará, até que  ser  adotado por uma senhora que gastou nada mais , nada menos do que a bagatela de  quase três mil reais para tratar das doenças  Uma das mais perigosas era a transmitida pelo carrapato e fazer daquele bicho um verdadeiro animal de estimação. Um  cachorro amigo. Mais vale a pena ter um cachorro amigo do que um amigo cachorro! Não se sabe para que lado Barry  foi morar e quem era a tal senhora. A verdade é que o canino escapou de boa na hora certa que , talvez, ele mesmo estava já cansado de ser o acompanhante de um bêbado já que por duas vezes teve que passar  noites na delegacia do bairro.  Foi  em decorrência dos comícios proclamados pelo seu dono em perfeito estado de embriaguez e entorpecimento.  Deste e outros episódios  não se recordava causada pela amnésia alcoólica e, muito menos,  Barry que  não compreendia nada de nada.
Renata lembra  deste episódio em que Túlio o relatou a ela. O motivo pelo qual foi encaminhado à delegacia , não se recordava.  Somente lhe veio à mente que estava na portaria do  prédio de um amigo, recém-saído de uma clínica para desintoxicação de álcool e drogas  para convidá-lo a comemorar o seu retorno depois de  vinte  dias de internação numa clínica especializada, mas não milagrosa. Algo aconteceu entre ele e  uma senhora que passava no mesmo local e se dirigiu ao cão e  ele , desarvorado e indignado com algo da sua caixola perturbada, se excedeu. Foi parar no xadrez com Barry. Evidentemente, a comemoração seria à base de cachaça e drogas porque em sua bermuda o alcóolatra já trazia alguns papelotes e trouxas de maconha.


          Na delegacia, foi autuado pela terceira ou quarta  vez: as duas primeiras haviam sido  por porte de droga como usuário e a terceira ou quarta por desacato à autoridade.  As duas últimas, confessava o dependente, que  as esquecia  e sempre que recebia as intimações pelo oficial de justiça para comparecer ao local, o fazia acompanhado de seu advogado Emídio, um patife como ele que  o defendia em troca de pó.  Seu currículo ou  seu retrato falado estava mais do que manchado com tais artigos além de não ter ido votar em três pleitos mesmo  participando de duas ou três vezes consecutivas  como presidente de seção eleitoral em seu bairro in illo tempore.  Desta forma, não poderia retirar o passaporte e se fizesse um concurso  público , não tomaria posse do cargo  dado que uma das exigências era, justamente, a quitação com o título de eleitor nas votações e isto não o possuía.  Eliminava-se, assim, mais uma das oportunidades de trabalho a que poderia concorrer em uma vaga já que Entulho era inteligente. Realmente, sabe-se que se é inteligente quando as pessoas o dizem à pessoa que  detém tal dom e não aquele que se proclamava como o tal, como ele fazia, mas não era o suficiente para sair daquela charneca onde vivia rodeado de crocodilos machos e fêmeas. Todos eram , tão ou mais dependentes químicos como ele e sob a sua aba no dia  vinte e oito de todo mês, dia do pagamento quando ainda era professor e, logicamente, dia da alegria e patifaria.
            Na verdade, tinha consciência da sua auto-destruição, do seu auto-flagelo, mas poucas foram as vezes em que se manteve abstêmio e  de tudo de ruim que consumia em excesso. Foi somente quando do nascimento da primeira filha, Iracema. Permaneceu durante dois anos freqüentando um grupo de auto-ajuda, mas segundo alegava a greve de sexo que a mulher lhe impunha fez com que o casamento se acabasse lentamente e com a procura de putas na rua , retornou à ativa.  Laida  se sentia uma gorda, disforme e incapaz de se realizar como uma mulher dado também que se deixou levar pelos efeitos do pó.
          Casamento para a casa do caralho, vida nova, liberdade, poderia chegar em casa a hora que quisesse sem levar pela cara o rolo de massa que já o aguardava nas mãos de Laida atrás da porta e o pau comendo solto pela madrugada.  Os vizinhos acordavam assustados com aquela  gritaria do cacete, as crianças pequenas chorando sem entender a razão daquela luta conjugal  no meio da noite e houve, até, quem do próprio prédio chamasse a polícia para pôr fim àquele entrevero matrimonial. Laida botou-a para correr porque disse aos policiais que nada de mais estava acontecendo.  Somente uma briga de casal como em todo lugar do mundo de qualquer idade, etnia, universal. Foi a partir do fim do seu casamento que ele  se entregou de vez aos vícios sentindo mais a falta de suas filhas de quem foi pai e mãe ao mesmo tempo desempenhando duplo papel . A mulher e a sogra eram completamente duas bestas elevadas à enésima potência em matéria de maternidade. Não tinham o jeito, a manha, ou , simplesmente, a paciência que se requer para cuidar dos bebês e neste ponto, Bernardo, admiravelmente, trocava fraldas, dava banho nas filhas,  dava madeira, as ninava, as acalmava quando estavam com cólicas.  Colocava um DVD da estória sobre o   Pinocchio para a sua filha caçula, Eleonora que, apenas com 5 meses, maravilhava-se com as imagens da baleia e de Gepetto, fato contado também à Tatá uma porrada de  vezes. O alcoólatra é também uma pessoa repetitiva e pleonástica que reprisa muito o que já foi dito em  muitas ocasiões e não se dá conta do  fato ou ato falho. Estas e mais estórias foram contadas a ela por mil vezes e Tatá somente o escutava nos primeiros meses de relacionamento como que surpresa e com um sorriso nos lábios ou dando gargalhadas homéricas.Era o que mais gostava de fazer, primeiramente na vida, era rir porque rindo era, momentaneamente, menos infeliz e, em segundo plano,  ir à praia. Entrar no mar bem cedo pela manhã  pedindo e agradecendo a Iemanjá os dias passados que poderiam ter sido piores e os que estavam por vir pedindo que viessem melhores. Com o decorrer dos tempos,  ela  já não tinha mais paciência de escutar o mesmo argumento ou discurso das aventuras e desventuras do ser amado e lhe dizia que já havia ouvido aquela mesma estória desde o Gênesis até o Apocalipse.  Renata , sem acrescentar um ponto ou uma virgula,  fazia um flash back : os nomes dos participantes, personagens ativos,  passivos , protagonistas e coadjuvantes, a época do ano em que o fato ocorreu, o local, como aconteceu, quem se salvou de uma pior, a  rabuda ,quem se feriu, quem ele comeu, se é que comeu  e por aí vai, foi, ia, iria ou tinha sido. Ela já entrava no quarto dele  inventando mil caôs como aquele em que internou, apressadamente, seu pai em um hospital dizendo que estava em seu apartamento  em visita rápida , pois teria que ver o pai  em cima de um leito cheio de tubos e aparelhos cardíacos. E, na verdade, seu pai, um escritor famoso estava em casa escrevendo  sua autobiografia.

         As conversas eram na casa dele porque ele se recusava em sair com ela como algo normal.  Admitia ele que não saía para que não a maculasse por ser conhecido no bairro como um drogado e doidaraço , mas Tatá não se importava com que as outras pessoas iriam pensar ou deixar de pensar.  Apontá-la   na rua como se fosse também uma drogada tanto quanto ele por estar em sua companhia, ela não se importava. A  verdade era que o cenário de muitas  conversas e por que não falar de desavenças e entreveros eram no ambiente doméstico: a casa dele. Um apartamento grande e maior ainda por possuir poucos ou quase nenhum móvel e , totalmente, abandonado. Continha uma sala , uma varanda, dois quartos, cozinha, banheiro além de dependências de serviço. Das paredes caíam cascas de tintas pintadas e repintadas em várias cores pelos cômodos. Somente um sentimento de amor como que Tatá sentia e não era correspondida poderia levá-la a freqüentar sua residência onde passavam muitas vezes conversando e, raríssimas, na cama porque o  modus operandi  de Nado  em determinados dias não operava devido ao seu modus vivendi.
          As drogas e o álcool deixavam-no muitas e quase todas as vezes broxa. Tatá poderia até contar nos dedos quantas foram as vezes em que tiveram a dádiva divina,  biológica e fisiológica de terem tido uma relação sexual normal com direito a orgasmo. Sim, porque este é o objetivo final de qualquer coito seja com ou sem amor, mas ela era muito complicada para tal. Somente se realizava em uma  posição anatômica que não combinava com a altura do distinto e as dimensões daquela cama feito um catre de acampamento  já que era mais baixa do que ele, mesmo que  na horizontal, tudo é igual.
          A primeira vez foi como um casal de namorados tendo direito a beijo com que fez que Renata  se apaixonasse  ainda que o mesmo não fosse algo de extraordinário.  Foi a surpresa em seus lábios do beijo que a pegou num momento inesperado .  Não  imaginava que poderia acontecer sentindo em sua boca o gosto  orvalhado e molhado de outros lábios diferentes dos de Plínio ou Lucas que inexistiam. Com eles mantinha um relacionamento paralelo cada qual de um estado civil diferente: um casado e outro encalhado. Mais tarde, outra relação no câmbio  negro, literalmente negro,  era que a possuía com uma voracidade, velocidade  e desejo animal   como mal saído do cativeiro ou um presidiário sem direito a visitas íntimas. Chamava-se Geraldo e tudo começou, justamente, em um verão  na praia  de manhã cedo com insinuações verbais até o ato total num motel modesto e simples do bairro onde passaram a se encontrar em qualquer hora do dia.   Os outros  dois não a beijavam porque como eram pessoas de mentalidades primárias , suas ações eram também basicamente primárias como comer, beber, mijar, cagar, foder e dormir. E não eram exímios na arte de amar.  Somente o terceiro  a satisfazia e quando a beijava , era ela que recusava o beijo por ter perdido o hábito de fazê-lo virando o rosto de um lado para o outro com repugnância , mas adorando ser penetrada e gemendo como uma louca no cio.Os outros dois  ofereciam um sexo precário. Segundo sua amiga Pirôncia, a  mulher do florete, como assim a chamava por  ter sido  campeã sul-americana de esgrima, in illo tempore , para mau trepador até a pica atrapalha e homem é que nem  vassoura, tem que ter pau.  Os beijos dados  quando mais jovem nos poucos namorados que teve eram mais intensos. Assim, aquele beijo de Túlio penetrou na sua boca como uma flecha em um alvo mais do que distante e certeiro.  O  coração solitário  e efervescente como sonrisal num copo d’água embora remendado por esparadrapo.
          A merda já estava feita e iria feder muito mais e como!  E na primeira noite  Nado se lambuzou todo , jorrando seu esperma contra a parede de seu quarto desarrumado e fedido , porque tinha medo de engravidá-la  A porra foi lançada como um gêiser.
         - Nirvana ao cubo! – exclamou  ele.
         Este tinha sido o primeiro momento em que passou com ele após tê-lo encontrado na rua passeando com Barry e ao avistá-lo de longe o chamou e começaram a descer a rua conversando sobre o trivial variado quando Entulho lhe disse que estava para fazer doutorado na sua área específica embora desestimulado. Além de ele ser dependente químico cruzado, coisa que ela já sabia pela central de boatos do bairro,  por sua vez, Tatá sofria de uma descompensação  e que de um estado a outro a conduzia do  eufórico e alegre para a mais abissal das angústias. Tratava-se desde a juventude e quando irada  tinha a força de um touro numa arena espanhola  e a coragem de um herói da mitologia grega ou romana. Ninguém segurava  nem por um decreto de Sua Santidade nem mesmo seu pai que era muito briguento e do qual teve medo durante certos anos.
          Também   era sensível  e  chorou, copiosamente,  na juventude  seja pela morte de um gato de estimação,o Gugu, ou numa das brigas com o  primeiro namorado Ronaldo. Uma relação que durou oito anos parecendo ser um verdadeiro casamento e interrompida devido  ao temperamento da própria Renata, sempre desconfiada , cabreira e belicosa. Somente após quase  dez  anos de psicanálise , tornou-se imune a qualquer pieguice lacrimosa. Derramava uma lágrima apenas pelo olho esquerdo, o da emoção, enquanto o outro , o da razão permanecia seco e  dizia ser um choro  educado, comedido, imperceptível e diplomático. Por Túlio Bernardo, derramou somente duas lágrimas discretas. Foi uma  num dia de Natal perante a ele num bar depois de ter passado quase que dois meses sem vê-lo.  Seu ex-namorado Lucas, a apontava como um poço de ansiedade e ela, por sua vez, dizia a Nado que por ele era um poço de saudade. Como beijo, abraço, carinho, saudade e todos os vocábulos  da esfera afetiva de mesmo sentido semântico lhe eram repugnantes, não aceitava esta característica do poço porque ele, próprio, era repugnante a si mesmo  ainda que gostasse da companhia dela .  Era um modo de  deter a si próprio para não sair porque afirmava que na rua faria merda e , em casa, estava tranqüilo e calmo além de economizar grana e o pouco que restava da saúde. Talvez era um freio ou  um par de  muletas a sua amiga. Também não queria ser visto acompanhado por ela  talvez por causa das drogadas, bêbadas , crackentas de procedência e caminhos duvidosos que povoavam ululantes as altas madrugadas. A entourage de mulheres que o acompanhavam pelas quebradas da  sua vida que levava. Esta sua vida maldita e, desgraçadamente, perdida, errada e repleta de perfídias.


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