TEVILÁ
I
Muitos anos após ter atravessado o Túnel Velho que liga o bairro de Botafogo a Copacabana ou vice-versa, acompanhada de sua colega de ginásio, Alma Nívea, Renata Morelos, aos 13 anos, nunca poderia imaginar que, 35 anos depois, se apaixonaria pelo irmão dela, mais jovem e caçula de três irmãos, Túlio Bernardo. A família era descendente de mexicanos. Tiveram como raiz ancestral José Maria Morelos y Pavón, o primeiro a lutar pela independência do México e que foi capturado e executado pelo Santa Inquisição em 1815. Era seu tataravô e dele, através de gerações, a família conservou o sobrenome e o costume de comer tudo apimentado nas refeições.
Conhecido na família como Nado, e pelos patifes e fiéis correlegionários como Entulho, era um homem muito inteligente que esbanjavao intelecto com pessoas de neurônio de samambaia de plástico ou ameba. Mostrava-se aos demais através de seus discursos ou verdadeiros comícios, completamente inebriado e sob efeito da cocaína e maconha, pois sofria de dependência cruzada. Não se lembrava e que , algumas vezes, o conduziam direto para alguma delegacia ou hospital psiquiátrico dada a proporção do seu palavrório verborrágico e provocativo, insistente, prolixo, ininterrupto e inacabável e que, frequentemente, terminavam em porrada, sangue, suor, lágrimas e ranger de dentes. Era também, ao mesmo tempo, um homem tão sensível como a corda de um violino e que, somente, a expressava a profundidade de sua sensibilidade quando estava em estado in vino veritas. Era um poço de sensibilidade.
Estudou em uma instituição religiosa de ensino renomada durante um certo tempo até ser expulso pelos padres jesuítas que não o toleravam mais. O fato ocorreu devido às suas peripécias com os seus colegas e já, desde cedo, tinha propensão para adicção e contava sua epopéia ao longo daqueles anos à Renata quando se conheceram, em um verão de 2007, com o peito estufado feito pombo, ego inflado e brilho nos olhos, gesticulando-se e revivendo as situações dando a entender, precisamente, que era o mentor intelectual das brincadeiras mais pesadas, mais ousadas e mais criativas segundo a sua versão e atuação. E Renata o ouvia e ria , ao mesmo tempo, dos fatos ocorridos e inusitados que jamais ouvira na sua vida como a privada que foi lançada do sétimo andar de um edifício onde estava sendo realizada uma festa de debutantes da qual participou. Dançou uma valsa qualquer logo depois do vaso sanitário ter sido lançado do décimo andar por ter tido a válvula enguiçada. A água jorrava como um chafariz feito a Fontana de Trevi, em Roma.
Desde pequeno, Entulho tinha desajustes entranhados em suas vísceras que o afastavam da família e ninguém entendia o porquê deles que o atrapalhou em várias esferas da vida familiar, conjugal, social, intelectual, profissional e por que não dizer sexual. Álcool, maconha e pó não combinam apesar de ele ter gerado filhos à base de drogas com uma mulher do mesmo nível tóxico ou talvez pior. Era mais velha e cascuda. Chamava-se Adelaide e era mais conhecida como Laida. Sabia ganhar dinheiro e muito no meio em que atuava. Celebridades artísticas e famosas de grupos teatrais e cinematográficos de carreiras brilhantes tanto como as que se faziam para cheirar o branco como assim chamava em meio aos amigos tão dependentes quanto ele.
Vizinhos que o conheciam desde a infância nunca iriam reconhecer aquele menino de 5 anos que ficava arredio ao ver o pai e amedrontado, atrás das portas,roendo pães envelhecidos pelo vento Até . até a sua idade madura tinha receio dele. Algum sentimento estranho dominava seu pai em relação a ele pelo fato de ter sido Nado concebido como uma isca para que sua mãe, Judith, in memoriam pudesse, então assim, segurar um casamento que já ia mal das pernas, mas que foi inevitável. O casal se separou tempos depois e o pai de Entulho foi morar com uma mulher de nome Creusa que . com ela, há anos, mantinha uma relação extra-conjugal. Era sem muitos dotes intelectuais ou artísticos, mas os físicos compensavam a tamanha burrice. Parecia uma caipira bronca que, em toda a sua vida, nunca subiu em elevador ou viajou de avião por conta da sua ignorância ímpar e crônica, mas que soube fisgar o pai de Bernardo, também chamado Túlio no momento justo. Foi morar numa mansão com piscina e churrasqueira rodeada de regalias e mordomias em um condomínio nobre da cidade.Também nunca se atreveu a subir numa escada rolante.
Parece que, somente na velhice quando o seu pai se aposentou da magistratura e também do magistério, começaram a se relacionar mais ainda e tanto que, muitas vezes , entravam em conflito por coisas banais. Cada qual não expressava o verdadeiro amor que um nutria pelo outro, sentimento este atrasado, incubado, ficado para trás, in illo tempore. Os atritos eram constantes e para tentar esquecê-los, Túlio Bernardo se entorpecia de drogas e cachaça num ciclo vicioso enterrado numa cama como se fosse um jazigo mais do que perpétuo recuperando-se da ressaca, do cansaço, das paranóias e neuroses. Os elementos conjugados o levavam a este estado depauperado física e emocionalmente . Mantinha-se, assim, durante dias e até semanas com o celular desligado e se alimentando precariamente. Passava o dia inteiro quase que dormindo. Quem dorme muito, vive menos. Via filmes repetidos na televisão cujas tramas os revia de trás para frente e de cor e salteado. Muitas vezes as alterava em sua imaginação e fantasia em demasia para se sentir um pouco menos infeliz.
Entulho morava sozinho depois de ter sido abandonado por Laida com quem viveu treze anos e do casamento tiveram duas filhas: Iracema e Eleonora. Em suas conversas com Renata, talvez a única mulher com quem manteve uma relacionamento sem ter como base as drogas e a bebida, afirmava que tinha expulsado a mulher de casa. A verdade era que Laida tinha se auto-expulsado porque ninguém agüenta viver com um alcóolatra dependente de drogas ainda que ela também gostava tanto como ele de um branco. Sua filha mais velha foi concebida com o casal completamente entorpecido pelas drogas.
Soube do motivo da separação através de Fernanda Letícia , uma amiga cuja amizade era somente uma via de mão única da parte de Renata que a chamava pelo seu segundo nome. Ela morava num pequeno cubículo anexo ao prédio onde Túlio residia em uma praça, em Copacabana.O padrasto dela tinha sido porteiro deste edifício e sua mãe, por sua vez, foi babá dele. Zenaide, in memoriam, era seu nome e após a morte de seu marido continuou morando no mesmo local ainda que não tinha mais direito de residir lá. Anos depois, veio a falecer vitimada de câncer no estômago e Letícia continuou a viver no lugar contra a vontade dos moradores.
O prédio era no estilo art decó, mas estava completamente descaracterizado e abandonado, pois não havia mais porteiro e os moradores eram de procedência duvidosa e sem cuidados . Cada qual possuía uma estória misteriosa ocupando cada apartamento. O único que, de direito e de fato, era proprietário de um deles era a Vossa Excelência o eminente juiz aposentado , pai de Bernardo. Aos 46 anos, ele ficou sabendo que, na realidade, o imóvel estava no nome de sua mãe e até Renata ouviu a conversa entre eles numa sala minimalista com apenas um sofá de couro cujo assento estava carcomido e roído pelos ratos que coabitavam a casa Uma verdadeira pocilga em seu apartamento. Era de noite e Nado estava deitado na cama enquanto que Renata estava na cozinha preparando uma salada de ovos. Seu pai foi adentrando pelo apartamento chamando-o em meio à escuridão da sala sem luz . Assim, ela ouviu o diálogo dos dois e, prontamente, Túlio saiu com o pai para resolverem a questão da transferência do nome do proprietário do apartamento.
Somente começou a tomar jeito de um lar decente através da disposição de seu amigo e inquilino, Olavinho , in memoriam, em jogar fora 23 sacos cheios de lixo que Tata, como um dos muitos apelidos que Entulho lhe alcunhava, tinha recolhido da casa durante um dia em que ela, mesma, não se recordava mais em sã consciência como conseguiu tamanha façanha higiênica. Fedorentos e acumulados na sala fizeram parte da decoração do recinto durante quarenta e um dias e alguns minutos s. Era uma instalação artística,anti-ambientalista e fétida. Foi na época em que Entulho viajou para o Nordeste acompanhando seu pai para o levantamento topográfico de propriedades latifundiárias e que foi um verdadeiro fracasso. Túlio, logo logo, descobriu uma boca de fumo, se entregou à bebida e também aos lençóis de uma prima mais velha, gorda, inculta, histérica, no atraso e distante de nono ou décimo grau com quem passou três dias fodendo, bebendo, cheirando e fumando maconha. Deus sabe como! Agüentou as regalias do parentesco longínquo que a velhusca pôde lhe oferecer com suas manias, teimosias e tiques nervosos e grana para bancar os vícios do primo carioca. Ele gostava de mulheres mais velhas, rechonchudas e de seios fartos, opulentos e caídos que os remetiam à sua infância.
Foi, a partir desta viagem infrutífera, que Renata passou a ter consigo a chave da pocilga dele sem ter que precisar gritar pelo seu nome da calçada da rua para que a jogasse pela janela do segundo andar e despertar a atenção dos fofoqueiros de plantão e dos paparazzi. Entulho lhe confiou a chave de seu habitat, mesmo ciente de que confiar é bom, mas não confiar é melhor . Um velho ditado italiano. Seu apartamento não possuía interfone porque o prédio era um esculacho só e tampouco campainha. Alegava ele que a tinha retirado para não ser incomodado pelos funcionários que deveriam marcar as caixas de gás, de água e de luz. Da sua janela tinha-se uma vista panorâmica da praça onde foi o local que os dois se conheceram quando ainda era casado.
A mulher e suas duas filhas caminhavam à frente dele e ele, por sua vez, vinha atrás e olhava, descaradamente, para Renata, sentada em um banco e esta, por sua vez, o mesmo fazia em relação a ele do mesmo modo desavergonhado. Eram olhares docéis e de interrogação por parte dela que se perguntava se era ela que estava olhando para ele ou ele olhando para ela ou os dois que se olhavam ao mesmo tempo um para o outro, justamente porque ele o fazia , ainda que não o visse na presença de Laida. Poucos minutos passados havia feito o mesmo caminho em torno da mesma praça, do mesmo banco, das mesmas flores e do mesmo jardim sem perceber nada. Entulho sentia-se atraído pelos seios de Renata marcantes com uma camiseta branca e salientes com seus mamilos duros feitos peras maduras e que o deixavam de pau duro. Durante o seu trajeto sentia um um desejo nas mãos de segurar as tetas daquela que viria a ser algo indefinido em sua vida durante um tempo. O tempo da diferença, da briga consigo mesmo, da negação e do carinho que lhe dava, até então,ao qual não estava mais acostumado e que nunca mais teria nem em música com versos derramados em inglês com o clichê:
- You never find someone who loves you like me!
Desde a rua de baixo, já vinham brigando, discutindo segundo ele contou a Tatá e ela, realmente, sabia que quando o marido vai na frente e a mulher vem passos atrás não acompanhando-o, boa coisa não era. Era entrevero na certa. Na rua e em casa, o pau quebrava e Entulho jamais deu uma bifa, como assim denominava a palavra tapa, em Laida segundo seu depoimento no qual ainda afirmava que apanhava muito mais do que batia. Realmente, ela nunca apareceu na rua com hematomas ou escoriações generalizadas pelo corpo gordo, disforme, e pesado do qual caíam as banhas feito queda de uma cascata. Em sua cabeça havia galos e galhos porque era chifrada na maior diplomacia com direito a cartão de crédito estourado. Tinha que entrar em casa quase que agachada tal a quantidade de chifres que levava do marido infiel para poder passar pela porta. Fiel à sua infidelidade. Era também um pouco corcunda e levemente estrábica. Até uma empregada da casa, Divenilda, ele passou o cerol alegando ter sido assediado por ela enquanto tomava banho como narrou à sua amiga. Enquanto Laida trabalhava, ele a traía pela casa em todos os cômodos nas mais variadas posições eróticas que tanto apeteciam aos dois despudorados e desavergonhados. A traição doméstica, literalmente doméstica, não o livraram do medo de que ela viesse a dar com a língua nos dentes e contar à patroa que os dois fodiam quase diariamente. Saíam para fazer o supermercado como se fossem casados dada a intimidade dos dois. Divenilda sentia-se dentro do carro como se, na realidade, fosse a esposa do oceanógrafo e professor universitário.
Túlio foi incapaz de jogar para a lixeira os 23 sacos do próprio limbo que era a sua casa, pois este tipo de atitude não combinava com a sua pessoa como se fosse um lorde inglês ou pachá da Pérsia. Nem banho ele tomava com regularidade. Era um sujeito sujo e disso se orgulhava ao se referir à geração de poetas norte-americanos intitulada beatnik da década de 50 que escreviam poemas à base de alucinógenos elevando a vida marginal , o uso das drogas e a libertação do corpo e da sexualidade. Seus poetas preferidos eram William Buroughs e Allen Ginsberg enquanto Tatá possuía livros e mais livros de poesia nerudiana e de prosa latino-americana como os de Isabel Allende, Mário Vargas Llosa , Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges.
A vida desregrada que levava e que se deteriorou após a separação o tornaram mais dependente das drogas porque da bebida já a consumia desde a adolescência. Quanto à geração dos poetas, em suas respectivas biografias nunca foi mencionado a falta de banho ou de higiene pessoal e íntima. Não tomava banho porque era mesmo um sujeito sujo, largado, desleixado, relapso e de baixa auto-estima ou para melhor especificar de rasteira auto-estima. Afirmava ser beatnik com uma convicção sem Tata ter visto a sua “vasta produção” de poesia talvez interrompida pelos afazeres domésticos e o nascimento das filhas. Ele poderia vir a ser um verdadeiro poeta se não fossem seus poemas escritos ortograficamente errados, pois não era um letrado ou literato apesar de ser culto e poliglota. Não sabia, por exemplo, escrever vocábulos em que o grafema era X ou CH entre outros. Era oceanógrafo, mas atuava no ensino superior quando podia numa universidade religiosa de peso. Comparecer à sala de aula era somente quando estava de boa maré, mas muitas vezes amanhecia já de ressaca de tal proporção e envergadura como o mar encapelado, agitado que o impediam de professar a sua carreira acadêmica. Estava entediado até o momento em que foi dispensado pelos padres dominicanos. Um alívio para a comunidade acadêmica.
Chegava ao trabalho com o cheiro de bafo de cachaça e durante os dez anos como professor sequer corrigiu ou leu uma prova dos alunos e dava as notas assim como ao Deus dará e sempre a mesma pontuação: 7,5. Houve uma delas em que os enunciados estavam tão contraditórios e herméticos que um dos professores da universidade foi até a sua residência discutir o fundamento das questões tão dúbias e nebulosas. Renata concordava com as perguntas do exame, realizadas num pedaço de guardanapo de papel rasgado de um botequim próximo à sua residência onde ele passava o dia inteiro se embebedando. Era necessário concordar , pois havia aprendido em casa que “ com maluco, não se brinca” e era assim como era visto pelos vizinhos das adjacências devido às suas ações, reações, comportamento, atitudes e postura. Aprendeu o provérbio desde pequena com sua babá, Consolación, uma colombiana que ainda morava com ela e sua família, que a tinha como uma mãe de criação e não como uma doméstica. Mantinham uma cumplicidade e se entendiam somente com a troca de olhares, pensamentos e muitas risadas de coisas cotidianas que ocorriam e mereciam umas boas gargalhadas.
Entulho impunha medo do alto de seu 1,87 m, de mãos grandes e pesadas, capoeirista, ex- jogador de basquete e corpo, ultimamente, mais forte porque na época em que Renata o conheceu, ele era magro, barbudo e com os cabelos compridos e castanhos claros amarrados uma ora com rabo de cavalo e outra ora com um coque de uma madame francesa em decadência berrante. Quando soltos caíam pelos seus ombros e parecia um Jesus Cristo ou Tiradentes piorados. Era de pele clara e seus olhos eram de cor cambiante e profundos quando tirava os óculos sem os quais era próprio um cego perdido em um tiroteio. Tinha uma lábia triunfante que conseguia cantar todas as mulheres somente depois de muita bebida e indagando com uma frase que virou seu bordão de galã barato de boteco pé sujo:
- Tamu ou não tamu nessas carni?
Era a sua fala melódica, envolvente e cadenciada quando sóbrio. Parecia um menino tal qual como sua irmã o chamava por Nado e o colocava em meio às suas bonecas preferidas quando tinha ele cinco anos de idade. Desta lembrança guardava dentro de si com a sensação de ter sido abandonado pela infância por Nívea e pela própria vida. Uma lembrança muito longe e imorredoura que o incomodava no peito e o fazia chorar nas muitas conversas com Renata repetindo como era tratado e abandonado por Alma Nívea. Em noites de lua cheia se coincidente com o final do mês, virava uma matraca e não parava mais de tagarelar parecendo um ventríloquo desacelerado.
De cabelos presos, o rosto se tornava mais gordo. Foi um rapaz bonito e sem barba o continuaria sendo mais, porém o fato de ser barbudo não lhe roubava a beleza de seu rosto e também do seu coração embora acometido de tantas perturbações, vodus penetrantes, espíritos obsessores que o atentava em pensamentos e aflições mil. Foi assim que Renata Morellos aturou a convivência com ele até um certo tempo, pois quando se mudou para um bairro do subúrbio, a tal relação de “amizade” que tanto ele propugnava aos quatro cantos do planeta e a seus dois únicos amigos Douglas e Isidoro e a ela própria, não era mais a mesma. Ir para aquele bairro distante e sem opções de lazer a deixavam enfadonha. Mais ainda quando ele se enrolava numa colcha de flores azuladas e passava o dia inteiro vendo os programas televisivos fúteis e inúteis na depressão,angústia, carência, drogas, trevas e compaixão no sofá de couro preto e de alvenaria na única sala da nova moradia em condições humanas habitáveis habite-se. Chamava-o como a sua própria tumba e com toda razão. Ele inventava muitos neologismos e dizia estar tumbalado. Era assim criativo Túlio Bernardo e Renata, não ficava por menos. Tratava-o, carinhosamente, por fariseu, sacripanta y otras cositas más no momento adequado. Na ira dos deuses era mesmo filho da puta quando não o mandava para a casa do caralho ou se foder enfurecida até os ovários.
II
Renata o encarava com olhares dissimulados do banco da praça porque o seu caminhar e o seu porte a atraíam sem se dar conta de que a embalagem nada tinha a ver com o conteúdo. Nunca iria supor que Túlio Bernardo era do tipo do alcóolatra que já amanhecia bebendo cachaça e a da marca mais vagabunda e barata como seu café da manhã ou breakfast, que, mais tarde, ela teria que comprá-la para que ele pudesse atravessar o dia como um barco o faz até a outra margem do rio. Nem tampouco uma das vezes que o encontrou em seu apartamento tinha vivenciado uma cena dantesca. Ele, de cócoras diante do vaso sanitário, vomitando até as tripas em uma sequência, demasiadamente, acelerada e por pouco não coloca o fígado para fora. Expelia as próprias tripas e uma água esverdeada pelo ânus numa simbiose performática como nado sincronizado. Renata ficou mais abismada no dia seguinte, the day after, quando o encontrou pela tarde. Já sanado dos vômitos e da caganeira , saiu à tarde acompanhado de seu amigo Douglas para, simplesmente, beber novamente e isto ela não entendia como um sujeito iria repetir o que lhe causou mal a noite anterior. Era inconcebíbel, mas era verossímel.
Foi, na noite anterior, em que sentado em seu leito de colchão desforrado e esfiapado com lençol transparente, inexistente e incolor admitiu, de cabeça baixa, e a cabeleireira caída por trás de que era um alcóolatra. Muito depois, Tatá haveria de se lembrar desta cena e, ao mesmo tempo, dos diálogos em que mantinham. Dizia não ser alcoólatra levantando a bojuda ao ar como se estivesse brindando no vazio de sua existência algum acontecimento feliz da vida. Poderia parar de beber a qualquer momento e quando bem quisesse , era uma questão de tempo, assim o dizia à Renata, mas a verdade é que o alcoolismo é uma doença degenerativa e sem cura em que a pessoa só tem três caminhos: a loucura, a internação e a morte. Além de perder a dignidade, a família, o emprego, os amigos, a própria censura como ocorre aos alcoólatras em todo lugar do mundo atingindo os dois sexos, todas as etnias, todas as idades e classes sociais, Entulho chegou até a perder o próprio animal de estimação, herdado de suas filhas durante a separação.
Um cachorro de pequeno porte, de pelagem branca e de pedigree que se chamava Barry em homenagem ao cantor norte-americano Barry White, nome dado pela sua ex- mulher ao pobre canino que padeceu poucas e boas e também cortou um dobrado ao lado dele. O desaparecimento de Barry nunca foi, totalmente, esclarecido para Tatá, mas segundo informações de fontes fidedignas e , ao mesmo tempo, dotadas de sentimentos por animais domésticos o pequeno cão ficou abandonado durante duas semanas sem eira e nem beira pelas ruas, sendo assistido por vizinhos das adjacências, ao Deus dará, até que ser adotado por uma senhora que gastou nada mais , nada menos do que a bagatela de quase três mil reais para tratar das doenças Uma das mais perigosas era a transmitida pelo carrapato e fazer daquele bicho um verdadeiro animal de estimação. Um cachorro amigo. Mais vale a pena ter um cachorro amigo do que um amigo cachorro! Não se sabe para que lado Barry foi morar e quem era a tal senhora. A verdade é que o canino escapou de boa na hora certa que , talvez, ele mesmo estava já cansado de ser o acompanhante de um bêbado já que por duas vezes teve que passar noites na delegacia do bairro. Foi em decorrência dos comícios proclamados pelo seu dono em perfeito estado de embriaguez e entorpecimento. Deste e outros episódios não se recordava causada pela amnésia alcoólica e, muito menos, Barry que não compreendia nada de nada.
Renata lembra deste episódio em que Túlio o relatou a ela. O motivo pelo qual foi encaminhado à delegacia , não se recordava. Somente lhe veio à mente que estava na portaria do prédio de um amigo, recém-saído de uma clínica para desintoxicação de álcool e drogas para convidá-lo a comemorar o seu retorno depois de vinte dias de internação numa clínica especializada, mas não milagrosa. Algo aconteceu entre ele e uma senhora que passava no mesmo local e se dirigiu ao cão e ele , desarvorado e indignado com algo da sua caixola perturbada, se excedeu. Foi parar no xadrez com Barry. Evidentemente, a comemoração seria à base de cachaça e drogas porque em sua bermuda o alcóolatra já trazia alguns papelotes e trouxas de maconha.
Na delegacia, foi autuado pela terceira ou quarta vez: as duas primeiras haviam sido por porte de droga como usuário e a terceira ou quarta por desacato à autoridade. As duas últimas, confessava o dependente, que as esquecia e sempre que recebia as intimações pelo oficial de justiça para comparecer ao local, o fazia acompanhado de seu advogado Emídio, um patife como ele que o defendia em troca de pó. Seu currículo ou seu retrato falado estava mais do que manchado com tais artigos além de não ter ido votar em três pleitos mesmo participando de duas ou três vezes consecutivas como presidente de seção eleitoral em seu bairro in illo tempore. Desta forma, não poderia retirar o passaporte e se fizesse um concurso público , não tomaria posse do cargo dado que uma das exigências era, justamente, a quitação com o título de eleitor nas votações e isto não o possuía. Eliminava-se, assim, mais uma das oportunidades de trabalho a que poderia concorrer em uma vaga já que Entulho era inteligente. Realmente, sabe-se que se é inteligente quando as pessoas o dizem à pessoa que detém tal dom e não aquele que se proclamava como o tal, como ele fazia, mas não era o suficiente para sair daquela charneca onde vivia rodeado de crocodilos machos e fêmeas. Todos eram , tão ou mais dependentes químicos como ele e sob a sua aba no dia vinte e oito de todo mês, dia do pagamento quando ainda era professor e, logicamente, dia da alegria e patifaria.
Na verdade, tinha consciência da sua auto-destruição, do seu auto-flagelo, mas poucas foram as vezes em que se manteve abstêmio e de tudo de ruim que consumia em excesso. Foi somente quando do nascimento da primeira filha, Iracema. Permaneceu durante dois anos freqüentando um grupo de auto-ajuda, mas segundo alegava a greve de sexo que a mulher lhe impunha fez com que o casamento se acabasse lentamente e com a procura de putas na rua , retornou à ativa. Laida se sentia uma gorda, disforme e incapaz de se realizar como uma mulher dado também que se deixou levar pelos efeitos do pó.
Casamento para a casa do caralho, vida nova, liberdade, poderia chegar em casa a hora que quisesse sem levar pela cara o rolo de massa que já o aguardava nas mãos de Laida atrás da porta e o pau comendo solto pela madrugada. Os vizinhos acordavam assustados com aquela gritaria do cacete, as crianças pequenas chorando sem entender a razão daquela luta conjugal no meio da noite e houve, até, quem do próprio prédio chamasse a polícia para pôr fim àquele entrevero matrimonial. Laida botou-a para correr porque disse aos policiais que nada de mais estava acontecendo. Somente uma briga de casal como em todo lugar do mundo de qualquer idade, etnia, universal. Foi a partir do fim do seu casamento que ele se entregou de vez aos vícios sentindo mais a falta de suas filhas de quem foi pai e mãe ao mesmo tempo desempenhando duplo papel . A mulher e a sogra eram completamente duas bestas elevadas à enésima potência em matéria de maternidade. Não tinham o jeito, a manha, ou , simplesmente, a paciência que se requer para cuidar dos bebês e neste ponto, Bernardo, admiravelmente, trocava fraldas, dava banho nas filhas, dava madeira, as ninava, as acalmava quando estavam com cólicas. Colocava um DVD da estória sobre o Pinocchio para a sua filha caçula, Eleonora que, apenas com 5 meses, maravilhava-se com as imagens da baleia e de Gepetto, fato contado também à Tatá uma porrada de vezes. O alcoólatra é também uma pessoa repetitiva e pleonástica que reprisa muito o que já foi dito em muitas ocasiões e não se dá conta do fato ou ato falho. Estas e mais estórias foram contadas a ela por mil vezes e Tatá somente o escutava nos primeiros meses de relacionamento como que surpresa e com um sorriso nos lábios ou dando gargalhadas homéricas.Era o que mais gostava de fazer, primeiramente na vida, era rir porque rindo era, momentaneamente, menos infeliz e, em segundo plano, ir à praia. Entrar no mar bem cedo pela manhã pedindo e agradecendo a Iemanjá os dias passados que poderiam ter sido piores e os que estavam por vir pedindo que viessem melhores. Com o decorrer dos tempos, ela já não tinha mais paciência de escutar o mesmo argumento ou discurso das aventuras e desventuras do ser amado e lhe dizia que já havia ouvido aquela mesma estória desde o Gênesis até o Apocalipse. Renata , sem acrescentar um ponto ou uma virgula, fazia um flash back : os nomes dos participantes, personagens ativos, passivos , protagonistas e coadjuvantes, a época do ano em que o fato ocorreu, o local, como aconteceu, quem se salvou de uma pior, a rabuda ,quem se feriu, quem ele comeu, se é que comeu e por aí vai, foi, ia, iria ou tinha sido. Ela já entrava no quarto dele inventando mil caôs como aquele em que internou, apressadamente, seu pai em um hospital dizendo que estava em seu apartamento em visita rápida , pois teria que ver o pai em cima de um leito cheio de tubos e aparelhos cardíacos. E, na verdade, seu pai, um escritor famoso estava em casa escrevendo sua autobiografia.
As conversas eram na casa dele porque ele se recusava em sair com ela como algo normal. Admitia ele que não saía para que não a maculasse por ser conhecido no bairro como um drogado e doidaraço , mas Tatá não se importava com que as outras pessoas iriam pensar ou deixar de pensar. Apontá-la na rua como se fosse também uma drogada tanto quanto ele por estar em sua companhia, ela não se importava. A verdade era que o cenário de muitas conversas e por que não falar de desavenças e entreveros eram no ambiente doméstico: a casa dele. Um apartamento grande e maior ainda por possuir poucos ou quase nenhum móvel e , totalmente, abandonado. Continha uma sala , uma varanda, dois quartos, cozinha, banheiro além de dependências de serviço. Das paredes caíam cascas de tintas pintadas e repintadas em várias cores pelos cômodos. Somente um sentimento de amor como que Tatá sentia e não era correspondida poderia levá-la a freqüentar sua residência onde passavam muitas vezes conversando e, raríssimas, na cama porque o modus operandi de Nado em determinados dias não operava devido ao seu modus vivendi.
As drogas e o álcool deixavam-no muitas e quase todas as vezes broxa. Tatá poderia até contar nos dedos quantas foram as vezes em que tiveram a dádiva divina, biológica e fisiológica de terem tido uma relação sexual normal com direito a orgasmo. Sim, porque este é o objetivo final de qualquer coito seja com ou sem amor, mas ela era muito complicada para tal. Somente se realizava em uma posição anatômica que não combinava com a altura do distinto e as dimensões daquela cama feito um catre de acampamento já que era mais baixa do que ele, mesmo que na horizontal, tudo é igual.
A primeira vez foi como um casal de namorados tendo direito a beijo com que fez que Renata se apaixonasse ainda que o mesmo não fosse algo de extraordinário. Foi a surpresa em seus lábios do beijo que a pegou num momento inesperado . Não imaginava que poderia acontecer sentindo em sua boca o gosto orvalhado e molhado de outros lábios diferentes dos de Plínio ou Lucas que inexistiam. Com eles mantinha um relacionamento paralelo cada qual de um estado civil diferente: um casado e outro encalhado. Mais tarde, outra relação no câmbio negro, literalmente negro, era que a possuía com uma voracidade, velocidade e desejo animal como mal saído do cativeiro ou um presidiário sem direito a visitas íntimas. Chamava-se Geraldo e tudo começou, justamente, em um verão na praia de manhã cedo com insinuações verbais até o ato total num motel modesto e simples do bairro onde passaram a se encontrar em qualquer hora do dia. Os outros dois não a beijavam porque como eram pessoas de mentalidades primárias , suas ações eram também basicamente primárias como comer, beber, mijar, cagar, foder e dormir. E não eram exímios na arte de amar. Somente o terceiro a satisfazia e quando a beijava , era ela que recusava o beijo por ter perdido o hábito de fazê-lo virando o rosto de um lado para o outro com repugnância , mas adorando ser penetrada e gemendo como uma louca no cio.Os outros dois ofereciam um sexo precário. Segundo sua amiga Pirôncia, a mulher do florete, como assim a chamava por ter sido campeã sul-americana de esgrima, in illo tempore , para mau trepador até a pica atrapalha e homem é que nem vassoura, tem que ter pau. Os beijos dados quando mais jovem nos poucos namorados que teve eram mais intensos. Assim, aquele beijo de Túlio penetrou na sua boca como uma flecha em um alvo mais do que distante e certeiro. O coração solitário e efervescente como sonrisal num copo d’água embora remendado por esparadrapo.
A merda já estava feita e iria feder muito mais e como! E na primeira noite Nado se lambuzou todo , jorrando seu esperma contra a parede de seu quarto desarrumado e fedido , porque tinha medo de engravidá-la A porra foi lançada como um gêiser.
- Nirvana ao cubo! – exclamou ele.
Este tinha sido o primeiro momento em que passou com ele após tê-lo encontrado na rua passeando com Barry e ao avistá-lo de longe o chamou e começaram a descer a rua conversando sobre o trivial variado quando Entulho lhe disse que estava para fazer doutorado na sua área específica embora desestimulado. Além de ele ser dependente químico cruzado, coisa que ela já sabia pela central de boatos do bairro, por sua vez, Tatá sofria de uma descompensação e que de um estado a outro a conduzia do eufórico e alegre para a mais abissal das angústias. Tratava-se desde a juventude e quando irada tinha a força de um touro numa arena espanhola e a coragem de um herói da mitologia grega ou romana. Ninguém segurava nem por um decreto de Sua Santidade nem mesmo seu pai que era muito briguento e do qual teve medo durante certos anos.
Também era sensível e chorou, copiosamente, na juventude seja pela morte de um gato de estimação,o Gugu, ou numa das brigas com o primeiro namorado Ronaldo. Uma relação que durou oito anos parecendo ser um verdadeiro casamento e interrompida devido ao temperamento da própria Renata, sempre desconfiada , cabreira e belicosa. Somente após quase dez anos de psicanálise , tornou-se imune a qualquer pieguice lacrimosa. Derramava uma lágrima apenas pelo olho esquerdo, o da emoção, enquanto o outro , o da razão permanecia seco e dizia ser um choro educado, comedido, imperceptível e diplomático. Por Túlio Bernardo, derramou somente duas lágrimas discretas. Foi uma num dia de Natal perante a ele num bar depois de ter passado quase que dois meses sem vê-lo. Seu ex-namorado Lucas, a apontava como um poço de ansiedade e ela, por sua vez, dizia a Nado que por ele era um poço de saudade. Como beijo, abraço, carinho, saudade e todos os vocábulos da esfera afetiva de mesmo sentido semântico lhe eram repugnantes, não aceitava esta característica do poço porque ele, próprio, era repugnante a si mesmo ainda que gostasse da companhia dela . Era um modo de deter a si próprio para não sair porque afirmava que na rua faria merda e , em casa, estava tranqüilo e calmo além de economizar grana e o pouco que restava da saúde. Talvez era um freio ou um par de muletas a sua amiga. Também não queria ser visto acompanhado por ela talvez por causa das drogadas, bêbadas , crackentas de procedência e caminhos duvidosos que povoavam ululantes as altas madrugadas. A entourage de mulheres que o acompanhavam pelas quebradas da sua vida que levava. Esta sua vida maldita e, desgraçadamente, perdida, errada e repleta de perfídias.
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espetacular. nunca imaginei que vç tb tivesse esse lado poeta e o dom de escrever e ou melhor expressar. legal ...... vá em frente. bjs rachel
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