sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Tevilá III

III



Na  primeira vez em que esteve na casa de Nado foi por mero acaso. Era uma noite fria de chuva fina, melancólica, incessante e ingrata na qual se encontrava no cubículo fétido de sua então amiga Letícia. Era ela camelô.. Montava uma precária barraquinha de caixote de feira para a venda de fichas de telefone – não existiam cartões telefônicos -  e cigarros a varejo na avenida mais movimentada de Copacabana.  Assim  , ganhava o pão nosso de cada dia de maneira honesta e também escandalosa  porque quando brigava com o pai dos seus dois filhos era uma baixaria descomunal. Era outro camelô com uma carrocinha onde vendia amendoins açucarados durante o dia inteiro no mesmo espaço. Era mulato e atendia pelo apelido de  Caboclo. Gritaria e pedaços de pau voavam pelos ares na rua a torto e à direita. Briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.



 Era em  frente ao local onde Renata trabalhava . Uma agência de viagens pertencente a dois árabes, Mohamed e Ahmed, verdadeiros terroristas em solo brasileiro e de hábitos, costumes estranhos, duvidosos  , tenebrosos  e sinistros para os olhos desconfiados  dela. Todas as manhãs era aquele ritual.   Mohamed não ficava na loja e sim em seu escritório confabulando ou tramando com outros árabes. Por volta das dez horas, ia à agência e tomava um cafezinho, ficava poucos minutos e os dois conversavam em língua árabe e cada um voltava para o seu trabalho diário.  Eram de Beirute, no Líbano. Mohamed quando chegou ao Brasil vendia bananas e Ahmed vendia, de porta em porta,  todo o tipo de bijuteria prateada ou dourada como é do gosto deles até virar fornecedor de várias boutiques chiques da zona sul da cidade.



 Foi a partir deste encontro cotidiano  indo ao trabalho que nasceu a amizade entre elas e  que se interrompeu devido à inveja que Letícia  nutria por Tatá. Passaram a se encontrar mais vezes. Para aumentar o orçamento da família -  tinha três filhos -  também , vendia churrasquinho nos finais de semana e Renata era sua freguesa assídua quando a encontrava pela esquina das ruas, namorada ainda de Lucas. Era sempre no mesmo ponto a uma quadra da praia de Copacabana próximo a uma praça muito freqüentada durante o dia pelos aposentados e  desocupados que jogavam biriba e dama. Na parte da noite era a vez dos dependentes químicos, homossexuais, traficantes, piranhas e do próprio Nado. Uma vez chegou a comentar  à Renata que vira  seu amigo Douglas deixando-se ser chupado por um gay em troca de pó. Assim eram as suas noites e madrugadas afora.



Entulho chamou Fernanda Letícia  para ver se algumas roupas das filhas que ainda  restavam em sua casa após a separação. Talvez  serviriam para a filha dela mais caçula , Helena, do segundo companheiro, um alcoólatra in memoriam com o fígado tão esfacelado que parecia uma esponja. Ocloaldo, o nome da criatura. Nunca ficava muito tempo no emprego por causa da bebedeira. Depois de dois ou três meses , era despedido e com toda razão, pois chegava cambaleando bêbado e trôpego no trabalho. O que era de se surpreender era a sua qualidade de ótimo motorista de madame  quando sóbrio.



Tata entrou naquele apartamento completamente vazio e fedido como uma simples companhia e reparou nas teias de aranha no teto descascado. O quarto de Iracema e Eleonora estava muito empoeirado e ela começou a espirrar muito. Achou de uma pobreza medonha a ação de Letícia.  Abria as gavetas emperradas do armário à cata de roupas para sua filha como se fosse um urubu farejando uma carniça já no osso. Olhos ávidos, esbugalhados, negros e carregados de cobiça. A maioria das roupas era composta de vestuário de grife  importada.



 Renata  resolveu ir embora de repente como era de costume. Os seus rompantes já conhecidos pelos seus amigos. Não era nada pessoal contra eles. Apenas uma das  conseqüências de sua personalidade.  Quando estava em um ambiente que  já sentia a iminente prorrogação contra os protestos de gregos e troianos, ia embora.  Foi quando Nado lhe disse que a acompanharia até a portaria e ela  julgou o gesto de uma delicadeza ímpar.  Tão cavalheiro! Poderia descer sozinha . A porta social e o portão azul, o velho portão azul cansado de guerra na tarde de um sábado ensolarado, que dava para a rua estavam abertos. Primeiro, perguntou o nome dela. Foi quando, dócil e descaradamente, Nado quis saber seu estado civil.

            - Você é casada?



Renata não era casada nem nunca tinha sido e o sonho de se casar já tinha ido para o beleléu.  Havia somente conhecido pessoas certas nas horas incertas e pessoas incertas nas horas certas. Com o decorrer do tempo, por si  só, concluiu que a mulher inteligente jamais se casa. Respondeu-lhe que era casada e , diante desta  resposta, ele engatou a seguinte exclamação sem maiores rodeios, rebuscamentos  ou floreios, ali na lata, um tapa na cara:

            - Poxa, como gostaria de dar uma trepada  gostosa contigo agora!



Ela foi embora sem responder , achando-o atrevido, mas ao mesmo tempo sincero. Nado estava vestindo apenas uma bermuda preta e o peito estava nu. Era seu modelo com ou sem chuva.  Sua única bermuda preta e de listras verdes laterais ainda limpa .  As camisas eram  de malha quando as usava. Estavam  sujas, suadas e manchadas de água sanitária por conta exclusiva de sua tia Darcília, ou tia Dadá, irmã de seu pai, que  as lavava sem o menor zelo ou cuidado. Talvez por causa da idade avançada. Era uma octagenária solteirona que pelo sobrinho alimentava um amor maternal e que a acompanhava na compra semanal em um supermercado local muito movimento em decorrência de vários produtos com preços acessíveis e em promoção.

Quando ele se lembrava de levar suas roupas à casa dela -  o que não era seu hábito - tampouco as trazia de volta para vesti-las. A sorte é que a metereologia contribuía neste aspecto para que se vestisse assim. Dois anos mais tarde, Renata lavou todas as suas roupas na própria casa dele sem máquina de lavar, recuperando-as do mofo e jogando fora as que os ratos tinham roído e com um sabão em pó muito potente.  Tudo estava encardido e já perdendo a cor original.   Separava-as por cor  e as deixava num único balde de plástico  que fora de Olavinho.  Tinha sido um dos muitos inquilinos que tinha morado em seu apartamento já que estava vazio e com um quarto livre. O quarto das meninas.  Era somente colocar um colchão no chão e de uma trouxa fazer um travesseiro e pronto. Virava uma cama. Antes dele, um apontador de jogo de bicho, também alcoólatra,  outros moraram por um certo  período  com Entulho. Período este que correspondia  , exatamente, ao momento no qual ele  percebia que estava sendo enganado, desrespeitado, roubado  ou sacaneado quando dos seus acessos coléricos e manias persecutórias.

. Eram pessoas de más índole e conduta envolvidas em transações clandestinas, tenebrosas e escabrosas. Apesar de todo este passado e presente dos seus eventuais inquilinos, Nado precisava deles. Não do dinheiro do aluguel  que para ele não era importante , mas da companhia. Era adepto do avesso do dito popular. Antes só do que mal acompanhado. A solidão invadia tanto o seu âmago e suas entranhas  sentindo somente falta das filhas que passou a adotar outro. Antes mal acompanhado do que só. E daí geravam brigas, desavenças, conflitos, brigas, e eticetera e tal. Acabava sozinho novamente e com má fama de brigão, louco e  temperamental. Um de seus inquilinos era proprietário daquele bar próximo à sua casa onde passava o dia bebendo. Chamava-se  Lindolfo e toda a sua mercadoria não continha nota fiscal quando comprada além de a validade de vários produtos estar  vencida e sem alvará de licença legalizado para o pleno funcionamento do estabelecimento: um pé sujo dentro de uma galeria.



             Renata dizia que tinha aberto uma franchise  de lavanderia naquele apartamento no quarto que fora das filhas. O secador armado era enferrujado e já tinha sido jogado fora por Nado. Também Ariovaldo, braço direito de seu pai que havia feito o mesmo, mas não se sabe como sempre estava ali. Sempre voltava. Pernas firmes e cruzadas  como se pedisse por misericórdia ainda para ser utilizado nos últimos estertores. Até que um dia foi jogado fora  , definitivamente, na mudança como outras bugigangas e quinquilharias cheias de teias de aranhas e traças comendo seus poucos livros. O mais significativo para ele era o do poeta Charles Baudelaire  e Cartas de Vincent a Theo  emprestado a  ele pela sua então sua amiga  apaixonada. Nunca o devolveu , achando que tinha sido presenteado ou mesmo acreditando que quando esteve na casa dela, tinha trazido de lá após escolhê-lo entre vários livros.

             Diante da exclamação sobre a hipotética trepada, Renata foi embora, mas não estava  surpresa devido  à troca de olhares na praça. Ao contrário, pensou, perguntou a si mesma:

            - Quem sabe um dia?

            Após a separação, Nado passou a promover em seu apartamento churrascos todos os finais de semana freqüentados por seus amigos alcoólatras e putas de várias idades regados à  droga e bebida.  Como era tido como louco, os vizinhos não se atreviam a abordá-lo em sua conduta durante a realização da comilança.  Do churrasco partia-se para as orgias  com gritarias , escandalizando os moradores do prédio e vizinhos que perduravam , às vezes, dois ou mais dias. As putas se tornavam suas “ amigas”, algumas chegaram até residir no quarto desocupado e com uma  proveniente do Nordeste e jeitosinha, Nado tinha decidido morar com ela e buscar seu filho naquela região.Todavia, a puta vacilou legal porque viciada em pó, acabou descobrindo entre os pertences de Nado um relógio da marca Patek Philip, herança de sua avó paterna e vendeu-o a um desconhecido por um preço de banana para poder comprar pó.  Túlio soube por terceiros que a viu negociando o relógio francês e quando a puta chegou em casa meteu-lhe a porrada. A prostituta levou tanta bifa daquele homem que caiu no chão e depois de tanta  porrada, arrumou suas roupas e meteu pé. Deus sabe para onde.      

            Várias foram as putas que Túlio Bernardo teve e  mantinha relações  simultaneamente o que fez Renata Morelos desconfiar de sua insatisfação sexual com ela um dia.   Percebeu que parecia que algo estava faltando e que este algo deveria ser uma outra mulher para poder satisfazê-lo porque já estava acostumado com tanta putaria e fodelância em trinca ou mais. Seu relacionamento  sexual com Renata começou a ser algo mais genuíno e natural com  brincadeiras jocosas e, às vezes, o faziam tanto que o ato em si já haviam esquecido de concretizá-lo. Foi assim que Túlio Leonardo ficou conhecendo João Pestana quando fechava os olhos parecendo querer dormir. Renata reclamava, mas dizia ele estar acordado somente com os olhos cerrados. João Pestana foi um personagem criado pelo escritor paulista , Monteiro Lobato, e que queria dizer nada menos, nada mais que o sono que estava por vir. Dizia ele que estava viajandão como o nome de um antigo trailler numa praia distante que vendia sanduíches. De outra feita, Renata insinuou a contar-lhe um segredo e disse, ao mesmo tempo, que não poderia dizer a ele, pois deixava de ser segredo. Segredo guarda-se para si próprio. Uma noite, Nado pediu a ela depois de terem tido relações o divórcio. Ela lhe respondeu a impossibilidade de dá-lo porque não eram nem casados. Renata afirmava que nem em filme de Luis Buñuel isto aconteceria. Na  verdade, algo feito um mosaico de sentimentos confusos e difusos estavam sendo batidos no liquidificador do  coração dele. Túlio Bernardo estava confuso ali diante daquela que seria a mulher, não da sua vida, mas sim a que em sua vida, mais teve afeto e carinho por ele misturados com preocupação como se fosse uma mãe sem nunca ter tido um filho e que não o deixava em apuros dentro de suas possibilidades.  Sempre armava um modo ou jeito para que nada lhe faltasse durante o período deste relacionamento. Quando pensava que estavam dando dois passos à frente , na verdade estavam indo cinco para trás. E dez para trás significavam quinze para a frente que a deixavam confusa e aflita sem entender a mecânica e dinâmica do alcoolismo e das drogas na cabeça dele. Era brabo. Como era brabo!

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