terça-feira, 15 de novembro de 2011

IV

 IV



Mais tenso foi o momento em que ela passou na casa de Nado no dia 14 de dezembro de  2007.  Naquela data, se recorda muito bem do casamento ao qual teve que comparecer  e que, depois, da cerimônia iria visitá-lo como ficara acertado entre ambos.

O acerto foi feito num bar quando o encontrou acompanhado de seus amigos patifes be bendo  todas quando era já ainda de tarde.  Renata estava a caminho do salão onde iria ser maquiada para a ocasião.  Depois de tudo, na volta do casório, toda maquiada e vestida a rigor, passou na casa de Túlio Bernardo e já entrando no apartamento, ouviu-o gritando:

- Renata, eu estou acompanhado! Estou até agora na patifaria! – disse-lhe.

De um primeiro instante pensou ela que estaria na companhia de uma mulher, mas era de um sujeito todo engravatado que sentado bebia cerveja. Quando a viu e foi apresentada a ele , o  dito cujo  começou a cantá-la de um modo tão chulo e  escroto que a deixou  com nojo e raiva. Chamava-a por todo instante de “ meu amor” e , ao mesmo tempo,  coçava o pau  e perguntava  se queria cerveja, se era casada, onde morava,  se dormir ali y otras cositas más.  Enquanto isto, Nado se vangloriava de  uma camisa  que vestia sem prestar atenção naquele sujeito mais parecido com um galã de padaria tipo um pereré pão doce. Mais tarde, esta camisa foi para o lixo. O rato roeu a roupa do rei de Roma.  Como o salto alto a incomodava assim como aquela elegância momentânea, resolveu ir  em sua casa para se trocar com a intenção de voltar. Já estava de posse da chave de Nado quando disse que mudaria de roupa e eis que, de repente, Túlio Bernardo, solta a seguinte exclamação:

- Vai que ele está te achando a maior gata!

Tatá ficou indignada  por achar que Nado estaria oferecendo-a ao amigo como se fosse uma mercadoria ou como fazia em relação a outras mulheres que freqüentavam o seu apartamento. Uma passava para outro . O alcoólatra, ao perder a censura, canta a mulher do melhor amigo e, às vezes, canta o próprio amigo e não se recorda no dia seguinte devido à amnésia alcoólica. Como o conhecia há pouco tempo , menos de um mês, somente uma ou duas semanas, desceu e, improvisamente, lhe veio à mente que os dois poderiam obrigá-la a fazer sexo de todas as formas já que se encontravam alcoolizados e entorpecidos. Na sua cabeça poderiam até fazer algo pior mediante o uso da violência. Chegou a sentir um mal estar e teve um mau pressentimento.  Algo muito forte, uma intuição de que deveria se ausentar daquele lugar o mais rápido possível, um temor se apossou dela que teve até uma queda de pressão. Estava já lá embaixo. Em um minuto, subiu de volta e entregou a chave ao seu proprietário alegando estar passando muito mal e que não retornaria mais. E era a mais pura verdade. Se viriam depois ainda outro dia. Na sua mente estava programado passar a noite ao lado dele, mas quando rolam bebida e droga , tudo se descontrola e vai para a casa do caralho.  Foi, exatamente, o que aconteceu. No bar à tarde , a proposta era uma e de noite nada do que tinha sido combinado, aconteceu. Nada era  previsível. Tudo imprevesível.

 No dia seguinte à noite, foi até a sua casa e da rua berrou por seu nome dizendo que gostaria de falar com ele a respeito da noite anterior.  Muito lhe deixou muito  indignada querendo dizer que tinha sido ele tão deselegante quanto ao  engravatado. E ele não se tocava da situação. Mas, não chegou a conversar com ele. Ao chegar à janela, ele disse que estava acompanhado. Renata não sabia se era de um patife ou de  uma vagabunda.  Entre um e outro, preferiu escolher que fosse, realmente, uma vagabunda.Pensamento e dedução femininos. Ainda perguntou-lhe se poderia voltar mais tarde e ele disse que sairia. Passaram dias, semanas e meses. Ela não o via mais e tampouco a janela do seu quarto se encontrava aberta. O dia inteiro estava fechada.  Uma agonia em seu coração.  Começou a dar plantão sentada no banco da praça onde se conheceram e ele não aparecia passeando com Barry como o fazia habitualmente.. Passava pelos bares do bairro e quando via alguém de costas e cabelo amarrado, sentia algo estranho dentro de si como se fosse uma mocinha de 15 anos. É ele! Pensava. Nada dele. Era uma mulher.  Aquela impressão de ter sido oferecida ao amigo como se fosse uma peça em um leilão público estava lhe incomodando. Será que ele não percebia que ela queria ficar ao seu lado conversando ou algo mais naquela noite?

Na verdade, depois de muitas conversas entre os dois, relembrando o ocorrido,  Nado explicou que aquele tipo de pessoa não iria lhe fazer nada e se ainda ela quisesse fazê-lo, ele  iria broxar. O que mais indignou Renata foi o fato de ele  tê-la convidado para dormir com ele no apartamento que não lhe pertencia.  Por pouco, ela não lhe duas respostas. A primeira era de que o apartamento não lhe pertencia e a segunda era de que se tivesse que dormir com alguém o faria com o dono da casa.  Certamente, também deveria  ser um outro broxado  diante daquelas condições. O engravatado passou a noite naquela pocilga refugiando-se de uma briga que tivera com a mulher e por este motivo encontrava-se ali.

Durante muito tempo, este episódio ficou guardado na garganta dela e como não pôde vomitá-lo no momento  logo após, acabou engolindo com dor  e desconfiança.  O primeiro momento em que estiveram juntos foi tão genuíno e simples como uma gota de orvalho pela manhã. Ou um pedaço de pão fresco cedinho que ela não acreditava ser possível ter acontecido algo tão baixo diante de si.  Foi , a partir daí, que começou a nutrir por Túlio Leonardo, um sentimento misturado de carinho e , ao mesmo tempo, de abandono da parte dele, mas  com desejo de vê-lo a toda instante.  Quando passava pelos bares , tentava encontrá-lo sentado  entre as mesas.  Estava com vergonha e magoada por no dia seguinte à provável noite que passaria ao seu lado já estar acompanhado de outra mulher.  Percebeu o quanto era piranhudo  e não hesitou em falar a verdade.  Era uma sexta-feira  seguinte ao dia do casamento quando voltou para tentar argumentar algo e dizer que era uma mulher diferente.  Não era daquele tipo a que ele estava acostumado que entrava em sua casa em troca de pó e sexo ímpio durante a madrugada inteira ou dias conforme o montante da sua carteira de dinheiro.  Renata não bebia,  somente sucos e refrigerantes. Desde muito cedo nunca foi de beber e tampouco não fumava maconha e cheirava cocaína. Havia, apenas, experimentado quando jovem na universidade onde  fez um curso de especialização em escultura em metal. Havia cursado durante anos a Ècole de Beaux Arts em Paris e falava fluentemente o francês.  Não foi na França onde experimentou a maconha pela primeira vez e sim no Rio de Janeiro.

  Os colegas do curso anunciavam que “viajavam” quando fumavam a canabis ativa e ela foi no embalo achando que também iria “viajar”! Aconteceu, justamente, o contrário. Ficou muito deprimida na tal viagem,os olhos vermelhos, uma tristeza invadia mais o seu coração, mais do que o  habitual.  Chegou à seguinte conclusão de que não fumaria e gastaria dinheiro para tal e como corolário ficaria deprimida.  Não tinha razão de ser.  A cocaína foi uma experiência mais assustadora com um grupo de amigos franceses que tinham vindo da França para conhecer algumas cidades brasileiras.  Foi num apartamento onde estava hospedada a colega Anne Marie que adorava brincos com motivos da fauna brasileira. Precisamente papagaio, arara ou com plumas de qualquer ave.  Ao prepararem todo o ritual para o consumo da cocaína, primeiramente, esquentaram por baixo com um isqueiro  um prato transparente. Logo após derramaram o pó e começaram a alisá-lo várias vezes com um cartão para deixá-la bem fina. Ao colocarem em carreiras, Renata foi a primeira a cheirar com uma nota de dinheiro enrolada que servia como canudo.  A primeira impressão é sempre a que fica.  Imediatamente, sentiu como se algum anestésico estava esfriando toda a sua cabeça e o coração começou a bater  de modo acelerado mais do que a sua batida normal.  Mil paranóias passaram por sua cabeça e gritava que iria morrer .Os franceses apavorados começaram a fazer massagens no seu peito e, simultaneamente,  movimentos com seus braços.  Foi uma sensação tão desagradável. Passado o momento, não teve a mínima vontade mais de continuar cheirando algo que lhe fazia mal.  Estas foram as duas únicas experiências com drogas e se admirava como os dependentes químicos que o faziam  estavam firmes e fortes ao menos aparentemente. Túlio Bernardo era um desses. Cheirava a  noite inteira e bebia porque uma coisa puxa a outra.  Conseguia passar  dois ou mais dias sem dormir e sem comer por conta do consumo da droga e do álcool. Era magro e sua alimentação consistia basicamente em quase nada de saudável. Sabia cozinhar, mas a despensa estava sempre vazia porque o pagamento que recebia já tinha um destino certo: álcool e drogas. O único que não passava fome era Barry.  Assim,  uma vez ouviu ele dizer ao cão:

- Coma aqui Tobby, aqui você é o único que não pode passar fome!

Na verdade, naquele dia do tal casório, o que realmente aconteceu talvez ele não teria atentado ao fato em si porque como cheirava muito , falava mais do que matraca contando loas e boas, não prestava atenção no incipiente tarado e seu convite chinfrim.

Foi necessário que Renata o recordasse depois de encontrá-lo quase dois meses depois ou mais e tudo aquilo foi colocado para fora. O que mais doeu não foi o fato do engravatado em si e sim a maneira como foi tratada ao ser lhe ser dito que estava acompanhado quando voltou à noite posterior para tentar falar com ele. Venho uma ponta de ciúmes como também de desconfiança porque naquela noite ele não saiu de casa. A luz do seu quarto ficou acesa por horas. Realmente, deveria estar com uma mulher usando e abusando de drogas e sexo. O que começou a sentir por ele foi um carinho escondido no peito, uma vontade de estar sempre ao seu lado porque tinham o mesmo nível intelectual, falavam idiomas, havia uma simbiose entre os dois que foi se acentuando com o passar do tempo. Tornou-se para dentro dele um conflito ou uma culpa que o deixavam  agressivo e às vezes dócil. Renata não entendia o porquê deste  comportamento paradoxal.  À medida que se passaram a se encontrar e a ficar juntos quem começou a ficar em conflito foi ela. Se não fosse a ajuda de uma amiga ao indicar um grupo de auto-ajuda para pessoas que se relacionavam com alcoólatras teria enlouquecido de certo.  A freqüência nestas reuniões onde todos partilhavam seus problemas em comum fez com que ela se tornasse menos aflita e estressada emocionalmente. Passou a entender que ele sofria de uma doença involuntária  e conhecida, mundialmente, como a doença da negação. A reunião era numa sala cedida por uma escola francesa cujo corredor de acesso estava repleto de estantes com livros  franceses. À cada reunião que comparecia, pegava um livro. Em seu quarto  já possuía  nada mais , nada menos do que  vinte e seis livros empilhados oriundos da freqüência ao grupo de auto-ajuda.

 Nado, tantas vezes, lhe negava respostas carinhosas às suas perguntas e contraditoriamente agia como se fosse um namorado. Esta palavra para ele era como um atentado moral ou físico à sua pessoa.  Não admitia, mas por várias e várias vezes cometeu o deslize de sê-lo como se, realmente, o fosse sem perceber como se entregava nas respostas, ações e reações tanto quanto sóbrio ou ébrio.

 Aos poucos, a harmonia criativa entre os dois foi surgindo e  se acentuando cada vez mais.  Cada um criava personagens fictícios com nomes bizarros e esdrúxulos que conversavam entre si numa outra estratosfera: a da imaginação e da fantasia. Chegaram a um ponto tal de troca de personagens e das próprias individualidades reais que não se entendiam e caíam em altas gargalhadas. Mil personagens foram criados: Cabra, Rosca Espanada, Merdo Lerdo, Sacripanta, Fariseu, Lady Louca, Tibúrcio, Tibúrcia, Aderogilda Amarga , Bonitão do Rocha, Hiperbolato, Entreverado, Catifunda e Deusely.  Este foi o primeiro que veio à cabeça de Renata.  Como não conseguiria ficar sem a companhia do ser amado que lhe havia pedido o divórcio, pediu a ele que lhe deixasse o seu clone. E aí, nasceu Deusely, o clone de Nado, somente que em forma de travesti, sendo este detalhe acrescentado por ele.

 De puteiro e antro de drogados, o apartamento passou a ser um verdadeiro hospício onde personagens nasciam, morriam  e se ressuscitavam com mais vigor para a intranqüilidade dos moradores do prédio. Não sabiam o que era pior aquele manicômio durante a madrugada ou os fins de semana com churrascos freqüentados por prostitutas, viciados e regados a  drogas e álcool. Os personagens se exaltavam, gritavam , corriam pelo apartamento fazendo estripulias e acabavam cansados de  tanta representação. Era um verdadeiro teatro no qual o ator mais completo era o próprio Nado.  Além de inventar personagens, dançava, recitava, imitava, pregava sustos os mais diversos em Renata,  fazia o diabo.  Renata ria de se acabar e disto gostava.

Ao menos assim, quando Renata passou a freqüentar seu apartamento, muitas mulheres deixaram de chamar da calçada da rua e das poucas vezes que o fizeram, ele não foi até a janela para ver quem era. No entanto, isto não queria dizer que ele não recebia em seu apartamento as mesmas viciadas com os mesmos propósitos de ficar na sua aba  em troca de pó por sexo durante a madrugada. Renata não dormia com ele por uma simples razão: o homem ficava virado e não dormia.

 A central de boatos e os paparazzi  de plantão começaram a veicular a notícia que o doido tinha se casado com a escultora mais doida do que ele. Diariamente, se encontravam e ela ficava até altas madrugadas com ele. Apenas, havia  uma diferença conforme ele mesmo dizia a ela. Uma careta tão doida que não precisava de drogas.  Valia-se da própria fantasia e imaginação.

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