sexta-feira, 18 de novembro de 2011

VI



Gostar ou não gostar, eis a questão! Foi aos poucos que Renata foi conquistando a confiança do seu amado. E quem sabe um amor mal sentido?  Até a senha do cartão de crédito dele , ela o possuía, tal a confiança que depositava naquela doida.  Foi no tempo em que ainda era professor na universidade. Podia se dar ao luxo de todo dia 28 do mês, bancar a patifaria para seus “amigos”. Na vez em que ficou com o cartão de Nado, retirou somente a quantia de vinte reais. Ele  disse-lhe que podia tirar quando quisesse.  No entanto,  alertou para que não visse o seu saldo para não se assustar. A senha era a data de nascimento de sua filha mais velha, Iracema.

Poderia se fosse outra, retirar mais após ver o saldo, mas Renata era uma pessoa de boa índole apesar do seu temperamento intempestivo.  Era capaz das mais ousadas ações que deixavam Nado estupefato como aquela que dormiu em sua casa enquanto passava por uma rebordosa das mais brabas.  Nunca revelou o verdadeiro motivo que a fez dormir ali. Vinha-lhe à mente a morte de Pancracius.  Como não tinha o hábito de dormir fora e sua mãe era muito tradicional, ela teve que recorrer a um subterfúgio.

 Nado havia já estado em sua casa quando ela o convidou para ver suas esculturas e pregar alguns móbiles no teto de seu quarto porque ele era alto como um poste.  Foi num domingo, dia dos pais, ele vinha da visita às suas filhas que moravam com Laida.  Como moravam perto de uma boca de fumo, aproveitou e comprou o pó seu de cada dia. Ao chegar na casa de Renata, foi apresentado à mãe dela que num dado momento percebeu algo estranho naquele homem. Estava muito alegre , de uma alegria incomensurável após ter cheirado no quarto dela e no banheiro.  Renata teve que conter a mãe na cozinha para que ele pudesse dar cabo do que queria.  .  De repente,  Da. Maria Teodora, sua mãe, a chamou ao toalete . Perguntou se ele era drogado e ela respondeu:

- Não, imagina! – com muita convicção e veemência.

A partir deste episódio a sua presença foi tida quase que como persona no grata na casa. Para se encontrar com ele , inventava mil caôs  com pessoas fictícias, lugares verdadeiros onde já tinha estado e programas alternados .  Um álibi seu era a sua amiga  Nadine, uma descendente de holandeses, alta e ruiva. Toda vez que ia à casa de Nado , dizia ir à casa dela ver filmes em DVD  de  Jean Paul Belmondo, ator francês.

Na noite em que resolveu dormir em sua casa , inventou que iria para a casa dela. O motivo era o calor abrasador daquele verão que fazia com que o sol batesse na parede de seu quarto. À noite era impossível dormir naquele forno. A convite de sua amiga, segundo Tatá, foi dormir    onde poderia desfrutar de uma noite bem dormida com ar condicionado.  Foi assim que pela segunda vez dormiu na casa dele . A primeira vez também  inventou outro caô. Disse que por problemas emocionais, sua amiga não queria passar a noite sozinha por estar muito deprimida. Lá foi ela dormir na casa do seu amado. Das cabeças dos dois saía uma fábrica de birutices e da  dela uma de vários caôs para poder estar ao lado dele.  A sua permanência em casa foi de tal modo ausente que uma vez Dora, como era conhecida sua mãe, lhe disse que ela parecia ser hóspede de um hotel. Somente aparecia em casa para dormir.

Por três vezes anteriores , Tatá decidiu dormir na casa de Nado dizendo que iria fazer um arrebol. Era o termo que ela havia citado como outros para designar que iria ficar ali com ele até o alvorecer. Como ele não sabia o que era arrebol, explicou-lhe que era um  vocábulo muito usado pelo poeta dos escravos, Antônio Castro Alves. Foi inútil tentar dormir ao seu lado porque ele não parava de falar de tudo e de todos . Ela viu o dia amanhecer enquanto sua mãe lhe telefonava para voltar para casa  e que estava intranqüila.  Num desses arrebóis, ao voltar para casa cedo pela manhã e com as feições carrancudas de sua mãe e de Consolación, exclamou:

- Se se relacionar com um homem e dormir com ele é esta revolução, vou agora me relacionar com uma lésbica!

As duas não disseram nada.  Ficaram mudas, caladas, imóveis como estátuas marmóreas.

Aquela noite da rebordosa foi angustiante para Nado e ele se espantou ao vê-la lá embaixo por volta da meia-noite chamando-o pelo seu nome. Pediu-lhe que não saísse de casa  e que iria comprar cigarro e dormir ali com ele. Este dormir nada mais era do que uma assistência já que estava passando muito mal. Home care. Não adiantava nada porque após este mal estar sempre presente, no dia posterior sairia para beber. Nado vomitou a noite inteira enquanto Tatá dormia no colchão onde haviam dormido todas as pessoas que por algum tempo tinham se abrigado na casa dele como o próprio  Olavinho.  Dormiram no mesmo quarto e somente pediu que abaixasse o som da televisão, pois ela não dormia com barulho, o que foi atendida muito mais tarde.  No meio da madrugada , despertou ao ouvir um rumor. Era ele que não conseguia dormir e estava se levantando da cama para ir ao toalete. Foi quando ela lhe perguntou para onde ele iria e não soube mais da resposta porque caiu no sono novamente.  Despertou muito cedo com a claridade do dia que amanhecia e foi direto para a janela fumar. Era o seu único vício e em demasia. Fumava a rodo. Até Nado e seu amigo larápio haviam comentado a ela o tanto que ela fumava. Era a proporção da quantidade de bebida e drogas que eles consumiam.  Era muito cedo ainda  por volta das seis e meia da manhã e nada estava aberto. Nado tinha passado para o outro quarto e ali deitado no chão exclamou para a sua apaixonada:

- Estou carente, mas não de namôro!

Renata deu-lhe um beijo na testa e quase lhe respondeu que não precisava disso porque era ela quem o namorava e não ele em relação a ela. Foi uma noite muito pesada já que Nado além de  sofrer de dependência cruzada , tinha úlcera no estômago, uma ferida tão aberta , vermelha e exposta. Parecia ser uma verdadeira boceta.  Ela viu  em sua ultrassonografia depois de passarem quase qautro meses sem se falar. Foi ele quem a procurou chamando-a por Renatinha quando a encontrou na porta do prédio dela. Ela levou um verdadeiro susto. Uma atitude como quem quisesse  se aproximar usando o nome dela no diminutivo. Estava ele com a ultrassom debaixo do braço e ele convidou-a para ir à sua casa.  Renata havia dito que o afastamento fez com que ela tivesse cortado um dobrado e sofrido muito. Ele apenas disse:

- E  eu ?

A úlcera era e não era tratada com medicamento. Ele chegou a se consultar num especialista sem deixar de revelar seus vícios. Não tomava a medicação de maneira constante ´porque o que tomava com frequência era a sua cachaça sagrada de cada dia. Pantocal, o nome do remédio e seu genérico era Pantocrazol. Até os remédios que ela tomava por duas ou três vezes , ela comprou para ele quando estava em estado lastimável.  Não media esforços para não lhe deixar faltar nada para que se sentisse bem de saúde orgânica e emocional.

 O relacionamento deles era sazonal. Às vezes bem e muitas vezes mal.  Ela também o perseguia muito porque era a sua fonte de alegria e queria sempre estar ao seu lado. Renata era uma pessoa triste.  Quando sumia no mundo, voltava muito tempo depois como se nada tivesse acontecido. Renata sentia-se como se ele tivesse partido para nunca mais voltar e ficava a ver navios. À parte esta sensação de abandono crônico em sua cabeça, vinham-lhe hipóteses as mais trágicas: uma prisão, uma briga com arma de fogo ou arma branca, uma internação, desaparecimento total sem deixar pistas  por causa de dívida de drogas ou algo do gênero.  Em vez disso, estava sumido em meio às suas zoeiras de sempre com os mesmos companheiros de patifaria, se entregando de maneira desenfreada às putas atrás de um prazer passageiro  quando não falhava o pau.  Logo após as noites inebriadas e entorpecidas,  caía na tumba de sua cama durante semanas num cansaço inesgotável.  Renata o tratava com muito carinho mais do que um próprio namorado nestes momentos.  Talvez se assim o fosse não seria tão paparicado e mimado por todos os lados.  Muitas das vezes quando surgiam os  entreveros, não conseguia conter o seu furor e a sua língua ferina  e o insultava sem dó e compaixão.  Certamente, nunca foi, ao  mesmo tempo, tão bem amado e querido  e enxovalhado, esculachado, esculhambado, avacalhado, anarquizado, tripudiado, humilhado e por que não dizer xingado!?  Para depois ser mimado, adorado, venerado, idolatrado e  o ciclo continuava como um carrossel que ele retroalimentava apesar de se sentir culpado. Evocava a lembrança do grande amor de sua vida, Maria Cândida, com quem ficou dez anos namorando e chifrando com as amigas dela e a própria empregada.  Isto era porque Canducha, como ele a chamava carinhosamente, foi o seu  grande amor. Imagine se não o fosse!?  Segundo dizia à Renata, depois de muito refletir e querer a felicidade da namorada , resolveu abandoná-la  para não fazê-la sofrer mais.  Achava-se um cafajeste e ela não merecia este tipo de homem.  A verdade é que Renata nunca acreditou nesta estória , nesta  resolução.  Muitas vezes, ele deixou escapar que tivera duas decepções amorosas na vida. A primeira foi com a namorada Maria Cândida. Mas, não foi ele quem decidiu romper o relacionamento? Por que motivo estaria decepcionado? A outra foi com Adelaide que lhe pregou o golpe da barriga. Ao querer mostrar ao pai que tinha virado homem, era viril e macho, depois de anos sumidos apareceu na casa dele com Laida barriguda. E a partir de então, tudo foi arrumado às pressas. Apartamento mobiliado no qual viveu com a sua mulher que reclamava do local. Dizia ela que morava num cortiço. Na verdade, quando foi à casa do seu futuro sogro em um condomínio de luxo com piscina e churrasqueira botou um olho grande em tudo.  Achava que, no mínimo, talvez também pudesse morar em algo do gênero, mas em vez foi disso acabou parando no último prédio de uma rua que dava acesso a um morro.  O morro onde ele subia e descia quase que, diariamente, e era conhecido como o “professor”. Freqüentava os bares de lá e se dava com as piranhas viciadas que se aproximavam dele com o mesmo propósito: drogas e sexo. Somente isto.

Desta vida , estava cansado e sentindo muitas vezes usado e vazio, assim dizia à Tatá que ouvia pela enésima vez o mesmo argumento e discurso. As pessoas não tinham caráter, ética, sensibilidade, intelecto, nada de nada. No entanto, estava ele no meio delas porque era este o seu mundo do qual não conseguia  sair. Os  momentos mais tranqüilos, por assim dizer, passava ao lado da sua apaixonada assistindo à televisão, programas cômicos, novelas ou  partidas de futebol. Logicamente, regado com cachaça  que ela descia para comprar para ele numa vendinha próxima, Todos sabiam já que era ela a “ mulher” do doidão  ou então também uma cachaceira. Apenas aparecia na porta do estabelecimento já lhe vinham entregar a bojuda da caninha da roça. Acabou levando fama sem proveito, mas pela sua aparência  percebiam logo que era pessoa avessa aos vícios prejudiciais à saúde.  Nado dizia não poder ir comprar , pois se botasse o pé na rua , certamente, iria para a patifaria e por este motivo pedia à Tatá que o fizesse por ele. A realidade era que Nado  sempre foi muito preguiçoso e se comportava como um pachá .Isto porque sentia-se culpado nesta relação e repetia sempre que não queria alimentar uma coisa que não existia dentro dele. Tinha amado somente Maria Cândida na vida. E Renata pensava consigo que, além de  dependente cruzado, era mal resolvido afetivamente pelo tempo até então passado , muito conflituoso e sempre querendo que Tatá ficasse  feito um porto seguro ao seu lado.  Afinal, como decifrar o enigma desta esfinge?

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