sábado, 19 de novembro de 2011

VII

VII

Com o tempo , Renata foi descodificando e desossando a personalidade de Túlio Bernardo com o convívio diário. Tal convívio, ora pacífico ora turbulento, lhe dava uma sensação ainda que irreal de que ele estava ligado a ela por laços afetivos.
Mais ligado ficou ao descobrir, por acaso numa conversa, que ela tinha conhecido sua irmã Alma Nívea no antigo ginásio e ficou muito feliz com esta coincidência. Somente viu a sua irmã uma única vez e não esqueceu jamais seja pelo nome incomum seja pela cor que carregava nos olhos: um azulado cerúleo.
A bebida o deixava mergulhado em antíteses e paradoxos a ponto tal que esquecia o que negava minutos antes e depois caía em contradição. No ano em que se conheceram, não poderia Renata jamais lhe presentear no dia dos namorados. Namorado causava um desagradável mal estar em relação à Renata e uma responsabilidade extrema. Uma semana antes do dia 12 de junho para não lhe entregar o presente na data, apareceu em sua casa com uma caixa de artesanato cheia de corações vermelhos. Primeiro, ele a esculhambou dizendo ser um presente cafona. E ao ouvir de Renata que estava decidida a não mais se relacionar com ele a partir daquele dia, Túlio Bernardo parecia se sentir abalado com tal resolução e lhe perguntou assustado:
- Você vai me abandonar?
Diante da recusa do presente que não lhe teria nenhuma funcionalidade, ela aventou a possibilidade de transformá-la em uma caixa para seus remédios. A tal caixa, no final de tudo, foi parar nas mãos de sua amiga Rebeka no dia do aniversário dela. Ela tinha se casado cinco vezes sendo a última com um inglês alcoólatra muito mesquinho e de quem roubava a carteira duas vezes ao dia: na manhã e na noite. Alan , in memoriam, era seu nome, e morreu de cirrose hepática. O casal já estava separado, mas não no papel. Ficou menos de 24 horas viúva, pois herdou do defunto o seu melhor amigo como novo marido e muito mais jovem.
Um dia Nado, em tom agressivo, lhe perguntou a respeito da tal caixa e que ela havia prometido transformá-la em uma de pequenos socorros. Foi ríspido e ela ficou surpresa por ele ter se lembrado da nova função que daria ao presente e, ao mesmo tempo, exigindo que assim o fizesse. Mas, a caixa não era cafona?
Eram situações, diálogos, respostas com ou sem nexos e anexos. Faziam ela perceber que de um modo ou de outro, ele gostava dela. Era doido. No entanto, por várias ou uma única razão não assumia seus sentimentos. Alegava que já estavam velhos para namorar, de sair de mãos dadas pelas ruas, irem juntos ao cinema y otras cositas más . É porque ele não leu O amor no tempo do cólera, de Gabriel Garcia Marquéz. Mas, o que seria anormal se eles se gostavam como tanto outros casais que se queriam bem e curtiam o amor em todas as idades e em todos os lugares do planeta? O amor entra e sai do coração sem pedir licença já dizia o fiel escudeiro de D. Quixote de La Mancha, Sancho Pança. Qual era o problema de estarem juntos se tinham algo em comum ainda que de uma ora a outra ele o negasse e afirmasse?
Foi assim que, pouco a pouco, ele foi desabafando o sentimento que vinha logo após as noites e dias de bebedeira e cheiração. Ficava virado três ou mais dias. Não comia. Era um sentimento vazio como algo oco dentro de si sem recheio aparente que pudesse preencher a sua existência. O efeito de tudo e de todos nestes prazeres momentâneos era o vazio existencial e o cansaço como se tivesse carregando uma tonelada de pedra sobre as costas. Um mal estar físico que conjugado com os problemas estomacais lhe deixavam, praticamente, reduzido a zero e deprimido na cama.
Não adiantava nada porque não se emendava. A dependência era algo mais forte do que ele e incontrolável. Nem a própria Renata jamais tentou fazê-lo porque sabia da inutilidade de sua ação nunca jamais cometida. Ela o ouvia e sentia o quanto era um homem sofrido e amargurado. Um homem sobrecarregado de muitas culpas que não merecia advindas da infância devido à criação que recebera. Todos os relacionamentos afetivos que, até então tivera, com pessoas dependentes químicas, tinham como cerne do problema o mal relacionamento com o pai. Foi assim com Lucas, Pancracius e com ele. Todos haviam medo da figura paterna enquanto eram mais ligados às sua respectivas mães.
Na juventude, chegou a freqüentar uma psicanalista durante três anos e em vez de tratar da sua psique e do seu emocional, comparecia às sessões e inventava o que não existia. Chegou a afirmar para a sua apaixonada que nunca tinha esquecido o que contara à psicanalista seguindo seu falso tratamento de maneira linear e coerente sem atos falhos. Poderia ter se livrado de fantasmas que o atormentavam e ter resolvido questões de seu ser em vez de ficar até aquela idade penando, batendo cabeça contra a parede ou dando murro em ponta de faca, se auto-destruindo e auto-flagelando.
O que mais impressionava à Renata era que no depoimento e testemunha deste limbo em que vivia, não era capaz de abandoná-lo. Soube que, durante dois anos, ficou sem beber e sem cheirar empolgado com o nascimento de Iracema. Comparecia a um grupo de auto-ajuda, mas depois o largou e voltou à ativa. Afirmava que parecia ter cunho religioso o que contrariava as suas convicções de ateu convicto e por tal motivo o deixou. Parece que não partilhava nas reuniões e dizia que, logo após, os dependentes químicos iam se drogar. Muitos deles aparentavam uma posição e na saída das reuniões eram diferentes. Quis ser original e assumir o que, realmente, sempre foi em toda a sua vida: um dependente químico. Disto se vangloriava ao narrar as aventuras e peripécias para obter as drogas ou então as viagens que empreendia com amigos da faculdade para tal propósito. Chegou a fazer a famosa viagem do Trem da Morte para países andinos saindo do Brasil. Disse aos pais que iria em busca de vestimentas feitas de lã de lhamas para revendê-las no Rio de Janeiro em pleno país tropical , abençoado por Deus e bonito por natureza. A viagem foi de uma envergadura tal que durou oito meses e ainda tiveram que se deparar num vagão com o grupo terrorista peruano Sendero Luminoso. Apavorados, todos foram salvos graças ao desempenho de uma das participantes, Mônica, e logo após até fotografias tiraram com o grupo. A cocaína rolava solta e era cheirada numa colher de sopa cheia.
Sempre esteve envolvido com bebida e drogas e em decorrência disto, esquecia do que tinha feito ou dito e muitas das vezes, era a sua apaixonada o seu hard disk ou disco de memória. Apesar de fazê-lo relembrar do que falara ou fizera, ele próprio em sã consciência admitia não tê-lo feito por acreditar ser um absurdo descomunal. Mas, Túlio Bernardo era o próprio absurdo em determinadas atitudes que deixavam Renata surpreendida principalmente após os inúmeros entreveros. Eram de tais proporções de agressões verbais de ambas as partes que acreditava ela ser o término de tudo então daquilo que tinham vivido. E sofria. Depois de passada a tempestade vinha a bonança, ainda que, após vários meses eles se reencontravam como se nada tivesse acontecido embora acertassem as arestas. Ele a recebia de volta e entregava a chave que inha e vinha num vai e vem in modus continus.
Se, em vez de ficar na retaguarda, assumisse não como namorada, noiva ou mas qualquer coisa que o valha, tudo seria tão simples e menos sofrido para ambos. O que atrapalhava era a sua cabeça e coração confusos e seu medo inconseqüente de se relacionar com subterfúgios porque ela o adorava de um modo incondicional sem pedir nada em troca. Fazia por ele as coisas mais impossíveis e não media conseqüências porque sentia-se feliz ao fazê-lo menos infeliz do que era. Sabia o que era o amor e o sofrimento por tal sentimento. O que adiantava se esconder dela se, na verdade, depois de tanto rolo ele voltava como afirmou uma vez a ela pelo telefone pedindo para não haver mais entreveros. No final da conversa, afirmava:
- Eu sempre acabo voltando!
Era um osso duro de roer esta relação. Um reclamava às vezes do outro, mas não se largavam e parecia ser um pathos o que havia entre os dois. Era tudo muito divertido mas, ao mesmo tempo, patológico. Ambos nutriam pelo outro o mesmo sentimento. A única diferença que existia era a de que um se declarava e outro se mascarava. Os deslizes que, às vezes, não de dava conta como aquele em que preparou para a sua apaixonada o macarrão ao alho e óleo que era a sua especialidade. Diante do fogão e com a colher de pau na mão mexia a panela e exclamava:
- Nunca preparei um alho e óleo assim tão bem para uma namorada!
Em um ano do qual não se recorda, Renata estava na casa dele no dia dos namorados e caía num sábado. O dia da semana lembrava nitidamente menos o ano como também se recordava da situação. Estavam na iminência de discutirem quando ele lhe pediu:
- Não vamos brigar hoje, logo hoje..... !
E não completou a frase, deu tempo a si próprio de deixá-la incompleta. Será que tinha medo de que ela se tornasse mais apaixonada e, conseqüentemente , mais possessiva já do que era? Era uma mistura de possessão e ciúmes porque ele não dava certeza de nada e isto a deixava num estado de expectativa e angústia. Sentia-se mal correspondida, mas sempre estava junto a ele e este por sua vez a queria de alguma forma estranha que ela não conseguia entender. Era muito estressante tanto para ela quanto para ele. Afinal, não era muito diferente dos companheiros do grupo de auto-ajuda que freqüentava. O enredo era o mesmo, a negação era a mesma, a degeneração também era a mesma. O que mudava era apenas o sexo e o endereço do parceiro ou parceira devido ao alcoolismo. Com cocaína rolando junto, a situação ficava mais complicada. Era como dizia sua amiga Nadine, alcoólatra em recuperação. Se a questão afetiva com pessoas normais já era complicada, imagine com quem era alcoólatra!?
Uma noite de quinta-feira convidou-o para viajar com ela à uma região de praia e, logicamente, ele declinou do convite. Foi algo aleatório. No dia seguinte, por alguma razão, não foi à casa dele e nem tampouco lhe telefonou. À noite, resolveu procurá-lo pelos bares das redondezas quando o avistou de longe devido à sua altura e também pela roupa que usava. Estava ele acompanhado de um homem e quando a viu chegando de mansinho porque assim ela o fez de maneira acanhada e com vergonha, ele exclamou:
- Cabra, você por aqui? Pensava que tinha viajado!
Apresentou-a ao homem dizendo que ela desempenhava para ele o papel de mãe, irmã, amiga e não completou mais. Talvez poderia dizer mulher, companheira ou amante. Em vez disso, virou-se para ela enumerando nos quatro dedos o grau de afetividade que sentia por determinadas pessoas de sua relação. A primeira era a filha mais nova Eleonora, a segunda seu pai, a terceira Iracema e a quarta era ela podendo passar para o topo de todas as outras. Falou isto com um copo de bebida na mão e de certo estava in vino veritas. E também de certo se ela lhe recordasse o que havia dito naquela noite acompanhado daquele homem, diria que não havia dito nada disto. E mais ainda, apresentou-a ao amigo dizendo ser ela amiga de confiança e que quando precisasse de alguma coisa e, evidentemente, esta coisa seria um ou dois papelotes de cocaína, seria ela que viria buscar a mando dele. Nunca aconteceu isto porque jamais ela o faria porque o seu amor por ele não chegava a este ponto de se arriscar. O sonho de consumo dele era que ela o acompanhasse numa boca de fumo. Tentava persuadia-la alegando total segurança. Algumas vezes quando saía para comprar a droga, era pego pelos policiais e tinha que soltar alguma propina para não ser indiciado no terceiro artigo como usuário. Não havia santo que a arrastasse para que o acompanhasse. Por que em vez de convidá-la para ir a uma boca de fumo, não a chamava para perto de sua própria boca e lhe dava um beijo?

Um comentário:

  1. olá amiga
    Gostei do que já li e desejo ler mais...depois comento tá? Continue!
    Beij de coração

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