sexta-feira, 18 de novembro de 2011

V



Além da fantasia adquirida através da leitura de diversos autores seja de prosa seja de poesia, Renata usufruía de uma imaginação fértil além de um sarcasmo e ironia inerentes  à sua personalidade.  Embora transmitisse alegria pelos olhos expressivos e brilhantes, tinha dentro de si um sentimento de abandono desde pequena. Somente depois de muitos anos seja dentro ou fora do divã do psicanalista, veio a entender que era uma pessoa  triste, mas irradiava justamente o contrário.

Aos 24 anos, em agosto de 1984 , escreveu uma carta ou um bilhete a um destinatário inexistente. Nela dizia  que a chuva e o frio varriam a noite lá fora e se sentia, abandonadamente, só com um gosto mal pronunciado nos lábios de jornal amassado.  Prosseguia que  ficava se recordando quantas vezes seu peito se transformava em uma garrafa vazia. Constantemente, estava sendo exprimida.  Se calava dentro de si o silêncio moribundo dos cemitérios e isto tudo a deixava cansada.

Uma tristeza  pesava em seus olhos e os sentia enviesados devido a isto  e tudo se tornava mais pesado.  Era quando  o tempo permanecia cinzento, quando a chuva lambia a calçada com suas gotas prateadas e molhava a sua língua sedenta de sílabas e palavras.  Confessava  ter medo de reter esta sensação  por muito tempo carregando sobre as suas costas feito um fardo ou uma cruz.  Como tudo isto iria embora e  lhe deixaria de lado, ela mesma não sabia.  Sentia falta de  se ter nos braços de alguém. Alguém que conversasse com ela e que a chamasse pelo nome para estar certa  que de alguma maneira existia. Para qual propósito, não sabia.  Queria deixar o seu corpo  tremendo em algum leito repleto de calor e acordar vomitando letras, gestos e olhares.

  Tinha muito medo de entrar novamente em um estado de depressão contemplativa que a levasse à loucura. Vontade de falar que estava cansada de viver mesmo sabendo que não o tinha feito muito ainda. Tinha menos que 30 anos.  Queria relaxar o corpo muito tenso e repetia  estar sofrendo mais a cada dia que passava. Afirmava não saber se disfarçava bem.

            Durante muito tempo, esta forte sensação lhe dominava a mente e somente aos poucos foi se libertando de pensamentos que boicotavam o seu subconsciente, inconsciente e consciente.  Foi necessário, a conselho de seu psicanalista, entrar num atelier ou oficina de arte para poder extravasar esta angústia existencial que a detinha em vários aspectos da vida sobretudo na parte afetiva. Esfera da sua vida da qual mais sofria porque nutria por si mesma um sentimento de baixa auto-estima quando, na verdade, era uma pessoa inteligente, culta, bonita, simpática e altruísta.

 Foi, através da escultura, que encontrou o seu caminho para se desgarrar das amarras e nós que  atormentavam a sua existência.  A identificação e a paixão por esta arte foi de  uma proporção e imensidão que conseguiu  ir estudar  no exterior. Permaneceu quatro anos em Paris  e com o francês fluente que aprendera enquanto esculpia, começou então a dar aulas de francês quando de volta ao Rio de Janeiro.  Era de fato professora da língua de Charles Baudelaire , mas não de direito.

 Não possuía nenhum documento que a certificasse que era professora com licenciatura. Foi quando ingressou numa universidade e pôde assim estudar mais a fundo a língua francesa e obter os certificados de bacharelado e licenciatura plena.  O ingresso na faculdade de letras lhe fez  modificar o astral  de tal maneira que quando, por ventura, não comparecia às aulas por algum motivo , sentia que algo estava incompleto neste dia.  Mais tarde, os anos foram ficando monótonos e iguais com as mesmas pessoas, os mesmos assuntos, professores mais, menos ou mal preparados.  Não via a hora de complementar o curso e sair com o diploma pronto .Se algum aluno particular lhe perguntasse onde havia aprendido a falar tão bem, teria uma resposta e um certificado para mostrar.

  Começou a ensinar desde 1996 colocando anúncios classificados num jornal tradicional já extinto.  Depois de conhecer um grego que se tornaria seu noivo, Pancracius, por estímulo dele adquiriu um computador e daí a procura foi bem maior.  Colocava anúncios grátis em vários sites e muitos  alunos teve a partir daí, mas já não estava mais com o grego.   O noivo tinha intenção de casar com ela por um único  motivo: obter a cidadania brasileira. Estava no Brasil cursando mestrado em arquitetura e terminado o curso teria que voltar para  Atenas. No entanto, decidira morar, definitivamente, no Rio de Janeiro, cidade onde estava desde o tempo em que era clandestino e com o visto expirado. Como mestrando, tinha o visto legalizado. Seu propósito era ficar na cidade maravilhosa onde era tudo o que ele mais desejava na vida. Tinha, então, 51 anos e ela tinha 43.  Procurava um modo de  permanecer por  aqui e o mais certo que havia encontrado era casar com Renata.  Uma mulher culta, mais jovem do que  ele 9  anos, viajada, poliglota. Tudo em cima.   Renata gostou muito dele, mas também era um alcoólatra e cheirava pó.  Talvez fosse a sina dela  , parecia ser um imã estas pessoas com quem mantinha amizade e depois nascia o afeto, a paixão e o amor .  O casamento não foi levado adiante porque não tinha que ser graças ao próprio Pancracius. Vítima de câncer no fígado , morreu e ela soube de seu falecimento por telefone.  Foi um noivado turbulento e muito aflito devido à  sua dependência química  que ela ignorava ser de grau tão elevado.  Quando veio a falecer, ainda gostava dele e mantinha contato com um informante para ter notícias a seu respeito.  Foi assim que soube  do seu casamento com uma alemã, de nome Uta., não tendo sido consumado por ele  estar doente. Ao saber do seu estado crítico de saúde entrou em contato com ele  deixando-o feliz. Foi visitá-lo, mas o seu emocional estava muito abalado e somente o viu por duas vezes. Depois destas duas vezes, tratou-a tão mal pelo telefone que ela resolveu abandoná-lo de vez. Foi quando voltou de uma viagem a Búzios que soube de seu falecimento.  Morreu sozinho acompanhado do seu cachorro, pois  Uta não morava com ele.

            A partir desta experiência e de sua imaginação fértil, Tatá se preocupava demasiadamente com Nado devido ao mesmo retrato falado do companheiro anterior. Havia até um cachorro na estória dos dois.  Drogas e álcool, morando sozinho com  poucos recursos.  Como morava próximo  à casa dele, era sair somente de seu prédio, dar uns poucos passos na calçada e olhar para a direita e avistar a janela de seu quarto.  Foram muitas e muitas as vezes que ela  procedeu deste modo decifrando e especulando hipóteses sobre a janela aberta ou fechada com a luz do quarto acesa ou apagada.  Mil pensamentos vinham-lhe à cabeça, pois muitas das vezes os dois estavam brigados ainda que possuísse a chave do seu apartamento.  Poderia ir até lá para ver se estava tudo bem ou precisando de algo.  A verdade era que não ia enquanto ele não a chamasse, pois tinha medo de encontrá-lo com uma vagabunda que era bem do feitio dele este tipo de mulher e atitude.

 Suas hipóteses a amedrontavam ainda mais quando o celular não respondia, ou quando funcionava era pelo final da tarde. Durante do dia, ficava na aflição sem saber o que, realmente, estava acontecendo. Poucas foram as vezes ousou ir sem avisar com o coração apertado e o medo de encontrá-lo com uma vadia. Nunca encontrou.  Poderia até ter feito isto no dia em que telefonou para ele e respondeu que estava em casa com uma amigona” das antigas”. Deduziu logo que, de certo, era uma puta e adentrou o apartamento.  A porta do quarto estava fechada, bateu na porta e por debaixo dela jogou as chaves do apartamento. Foi um sinal de raiva, protesto como querendo dizer que não queria mais saber dele.  Foi incapaz de abrir a porta que não estava trancada para ver o que estavam fazendo e quem sabe cair na baixaria e pancadaria.  Achou que seria muito  rasteiro de sua parte se comparar a uma puta. Por isso, foi embora ao encontro de Lucas com quem já havia programado passar a tarde ao seu lado na cama. Foi num dia de jogo de Copa do Mundo quando o Brasil foi desclassificado pela Holanda.  O vento que soprava cá , soprava lá também.  Na volta para casa  encontrou Nado na esquina.  Disse que tinha ficado muito entristecido com o que ela fizera jogando as chaves e, mais uma vez, as devolveu a ela.

Era um tal de devolução de chaves para lá e para cá que foram incontáveis as vezes. O ato para ela tinha o significado de não querer mais freqüentar o apartamento dele. Mas, era como  filme de Glauber Rocha. Sem roteiro e tudo acabava bem.  Estas chaves vieram parar  nas mãos dela quando ele viajou para o Nordeste com o pai e pediu-lhe que tomasse conta de seu apartamento.  Em uma semana arrumou o apartamento todo jogando fora as roupas velhas, forrando o colchão com lençol e colcha e os travesseiros fedorentos com  fronhas dela.  Colocou um tapete de artesanato no chão do quarto e ao entrar na sala chegando de viagem, ele pensou que estava entrando no apartamento errado. Deparou-se com um pequeno pinheiro natalino em cima da única mesa decente e de mármore que tinha em sua sala minimalista. Era o mês de dezembro poucas semanas antes do dia de Natal..

Desde então, Renata ficou com as chaves da casa dele e até mesmo quando Nado não estava lá, ia para arrumar seu quarto e a cozinha, ou fazer algo de comer para ele e colocar na geladeira. Era para passar a madruga como ele sempre dizia já que não conseguia dormir.  Nado chegou até a dizer que  Renata era a pessoa que mais circulava naquele prédio e realmente era.

 De outra feita, uma das moradoras ao vê-la entrar a questionou se era  moradora.  Era bem cedo de manhã no horário do breakfast.   Ela foi breve e concisa. Disse que não era moradora e sim amiga de um morador, mas não mencionou quem era a pessoa.  Sua presença diária começava a ser notada e para alguns moradores até incomodavam por questões de inveja e ciúmes, pois tinha até as chaves.  Como um doido daquele porte poderia receber todo dia a visita de uma mulher que, ao menos aparentemente, parecia não ser drogada e muitas vezes entrava no prédio com sacolas de supermercado? Quem era esta tal mulher? Esposa, namorada, noiva, parente ou amiga?   E que entrava e saía numa desenvoltura a hora que queria, dizendo apenas: bom dia, boa tarde e boa noite com quem encontrasse pela  escada sem dar a mínima? E nas horas dos atritos, não tinha medo de nada e de Nado  e saía do apartamento gritando pelos corredores. Vai para a puta que pariu, vai se foder, vai tomar no cú! Sem a menor cerimônia. Escandalizando o que já tinha sido escandalizado há vários anos por ele.   Os vizinhos do prédio ao lado ouviam as brincadeiras e também as desavenças entre os dois doidos. Mas, depois estava ela lá abrindo o velho portão azul num sábado ensolarado e subindo a escada que dava acesso ao apartamento do seu amado.  Da onde vinha,o que fazia, por que fazia, como fazia, por que toda hora fazia?

Na verdade, o expediente de Renata era , praticamente, full time porque além de fazer o que tinha como obrigação nas suas aulas de francês y otras cositas más sempre estava ali ao lado de Túlio Bernardo. Foi somente em doses homeopáticas em que ele começou a apresentá-la a apenas dois amigos como a sua “amiga” e que participava como testemunha ocular das zoeiras que os três faziam com drogas e bebidas. Nado conseguia se segurar assim como Isidoro cuja dependência não era tão intensa quanto a de seu amigo.  Douglas chegava a ventar  como afirmava Túlio Bernardo. Por ser magro, o seu amigo além de alcoólatra, dependente de cocaína também fazia uso de crack e caminhava na rua conforme o vento o guiasse. Era tipo o vento levou. Eram já figuras conhecidas dos bares das redondezas que freqüentavam e que também eram pontos de venda de tóxicos. Em alguns não podiam passar nem na porta por estarem devendo.  Douglas, controlado pelos pais inutilmente, quando não possuía dinheiro para adquirir a cachaça nossa de cada dia, cometia furto nos supermercados. Além destes estabelecimentos, também furtou vários pertences da casa de Nado. Depois da bebedeira e cheiração, ele se adormentava e Douglas aproveitava o momento. Furtava algo e ia embora.  Somente dias depois é que         Túlio Bernardo se dava conta de que algo seu sumia e , por força, somente poderia ter sido pelas mãos do seu amigo larápio.

 Quando Isidoro se separou de sua mulher, foi morar com Nado durante um ano e dele também Douglas furtou várias coisas.  Para Renata, o que mais doeu  foi a jaqueta americana de jeans do Hard Rock Café que tinha dado a Nado por ficar muito grande nela.  Ele usou-a por pouco tempo,  porque Douglas não a livrou das suas mãos ladras.  Todas as coisas levadas da casa de Nado eram vendidas a preço de banana para serem convertidas em drogas ou cachaça.  Em uma ocasião de entrevero com Nado – o que era mais habitual – e sem vê-lo e ter notícias dele, encontrou Douglas na rua. Cumprimentou-o e viu que levava na mão uma faca de um jogo de faqueiro. Apenas uma faca. Dizia ele que iria levá-la a um antiquário para ver o valor e tentar vendê-la.  Saiu apenas com uma do conjunto já que não poderia sair com o jogo inteiro. Como sabia de sua fama de ladrão, concluiu Tatá que iria tentar vender somente aquela, se colasse , colou.  Foi neste dia em que , de repente, ao perguntar por Nado que andava desaparecido, Douglas exclamou:

- O Nado gosta de você!




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